Vivemos tempos de negação. Os dias contemporâneos
enfrentam o retorno dos tempos medievais: negação da ciência, misticismo
explicando fenômenos naturais, o obscurantismo – para impedir o conhecimento -,
a nova Idade da Fé para regular as tradições e os costumes. E cristãos e
muçulmanos – característica nunca finda – resolvendo suas divergências
internas e entre si pela espada. Não sem enfrentarem grandes obstáculos –
religiosos, em grande parte -, o conhecimento e a ciência avançaram e continuam
avançando. Porém, o obscurantismo acompanha o tempo – apartado em séculos – e,
quando surgem chances históricas, dissemina-se em campos férteis. O negacionismo
é uma de suas mais fortes raízes.
Este início de século 21 está marcado pela negação.
No mundo, governantes de grandes e pequenas nações, países desenvolvidos e em
desenvolvimento, a pretexto de mudanças comportamentais, morais e nacionalistas
– e do suposto fracasso econômico da globalização -, conseguiram alcançar o
poder pela forma democrática e legítima do voto. Em todos os casos, os
argumentos de risco às liberdades e aos direitos fundamentais não
sensibilizaram a maioria para impedir esta Era de perdas, danos e conflitos.
Alcançaram o poder governantes da negação: Donald Trump (EUA), Jair Bolsonaro
(Brasil), Vktor Orbán (Hungria), Andrzej Duda (Polônia), eles governantes
ultraconservadores com governos de princípios negacionistas e fundamentalistas.
Outros, até de ideologia oposta, em tese,
fortaleceram-se: Vladimir Putin, na Rússia, Nícolas Maduro, na Venezuela.
Todos, em comum, autocratas. Creem no que interpretam e só aceitam o que é de
sua vontade. Intolerantes à contestação e a opositores, são permanentes fontes
de força bruta. Como governantes, não estão sós. Há milhões que os fortalecem.
Para alimentar esses milhões, nutrição da mente e da alma, há o
desconhecimento, a alienação, a insensibilidade social, a individualidade
extremada, a posse material como bem sagrado. Por isso, negam, negam tudo que
lhes parece diverso, antagônico e contraditório ao que pensam.
Nesta Era de Negação, mais um episódio – entre os
que se sucedem semanalmente – reacendeu o caráter negacionista. O fato está
diante dos olhos e os registros são memória: o racismo é história. A negação é
prática, é preservação, é perpetuação é cultura branca. O assassinato do negro
João Alberto Silveira Freitas, 40 anos, numa loja Carrefour de Porto Alegre
– por seguranças brancos, um deles policial militar -, desmonta qualquer
negativa. A fúria de um aplicando socos em série e do outro executando
uma gravata é de tamanha animalidade que só apenas o que os dois pensam
explica: é racismo, embora possam negar. Se a vítima fosse um branco, sofreria
tamanha violência? A investigação pode revelar a motivação subjetiva, mas
não trará João Alberto de volta.
Negacionistas em tempos contemporâneos soam com
incredulidade aos ouvidos dos que se opõem. A história é conhecida, a memória
está viva, as práticas são testemunhadas e as imagens da morte de João Alberto
são incontestáveis. Negar a motivação sob o argumento de que o fato está sendo
apurado é uma desculpa, no entanto, negar a existência do racismo na sociedade
por uma questão ideológica é não condenar a prática, uma herança da cultura
colonial da qual o Brasil não se libertou. É o exemplo do vice-presidente da
República, Hamilton Mourão.
Um general de carreira que nega que no Brasil
exista racismo. Mourão nega o que está claro, uma herança com a qual todos
convivem. Bolsonaro é um negacionista. Mourão é um negacionista. Ambos,
militares. O que se estuda nas academias militares, em tese, mais do que a
formação militar, no mínimo é a história. Distorcer a história pode ser um
fator de influência na formação, mas cada ser humano é dotado de capacidade de
isenção. Para Mourão, porém, não há racismo no Brasil (ele só existe nos EUA,
afirma), o que há por aqui é uma grande pobreza. Não por coincidência – e sim
pela formação da riqueza do país – é na pobreza onde se encontra a grande
maioria dos 53% de negros que compõem a população nacional. Não é a pobreza que
alimenta o racismo, é o inverso.
Existe racismo, General. Quantos negros chegaram a
generais, almirantes e brigadeiros? Quantos a reitores? A governadores? A CEOs?
Não é uma questão só de pobreza. Esta é um fator de proliferação. O racismo,
todavia, é latente. É branco, do rico e do pobre. Oculto, mas existe. Negar só
o alimenta. Negar, desconhecer (propositalmente) ou querer esconder é um ato
ideológico. Fazer que não vê, não sente e não cheira o que é imaterial, e o que
não o atinge individualmente, é uma posição de grupo político.
Há uma lenda que todos conhecem na infância. Diz
que se a criança jogar o dente de leite no telhado e recitar “Mourão, Mourão,
toma seu dente podre e dá cá meu dente são”, um novo dente nascerá rápido e
bonito. Não é o caso com a ideologia: o dente apodrece e não cai, se o dono
assim não quer, se o dono assim nega.
*Ayrton Maciel é
jornalista. Trabalhou no Dario de Pernambuco, Jornal do Commercio e nas rádios
Jornal, Olinda e Tamandaré. Ganhador do Prêmio Esso Regional Nordeste de 1991. Escreve
aos domingos para o blog Falo e Disse.
*Foto: https://www.geledes.org.br/onu-racismo-no-brasil-e-estrutural-e-institucionalizado/
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