Clarice mal acordava e adentrava no mundo digital.Procurava as celebridades, respondia os bons dias que vinham dos mais diferentes lugares. Do Sertão ao cais.
Chegavam orações, flores, vinhos, pensamentos profundos, outros superficiais, óbvios, e muitas canções.
Notícias áridas de economia, outras preocupantes de política, esportes, cinema, televisão.
O WhatsApp, Facebook, Instagram, Telegram, youtubers... Não existe mais vida sem eles.
Lá fora os campos, galinhas em algum quintal, cães latindo, sujando a rua, poucas crianças em algum parque, pessoas fazendo a feira contada nos supermercados, carros pela avenida.
Ela longe do mundo real, como outras, outros, a literatura esquecida, o cinema objeto do passado.
A manhã corria, rápida como funcionário de multinacional; sem conseguir largar o aparelho, que pouco tocava, há menos tempo para uma conversa agora, mesmo à distância, porque todos estão muito ocupados navegando.
Navegar é preciso, viver não é preciso.
Dava um tempo apenas na hora das refeições, nem sempre.
Nos bares, restaurantes, com as amigas, amigos, conversavam menos e espiavam a telinha um pouco mais.
Horóscopo, novelas, lançamentos de filmes e músicas, entrevistas. Tudo ao alcance da mão, dos olhos.
Na Espanha, durante a ditadura de Franco, homens se trancaram até durante 30 anos, dentro de casa; há casos que se enfiaram num buraco na parede. Sem poder viver o mundo lá fora.
Hitler fez com que a pequena Anne Frank ficasse presa no porão, esperando a morte chegar.
Clarice tem noção da história. Sem precisar de ismos, de ameaças, com medo dos pesadelos, da barata imaginada por Kafka; vive a realidade paralela imposta pelos tecnólogos, a indústria, o modismo, o mundo virtual criado para espantar o tédio.
Não vê mais televisão. Prefere que o namorado vá à padaria; esqueceu como é a praia, o riacho, um passeio montada num cavalo.
Está exilada, espontaneamente. Satisfeita, porque a rede não lhe deixa tempo sequer para pensar.
Como ficar triste, infeliz, se estou sempre ocupada? Responderia com outra pergunta, se fosse questionada.
A vida não tem mais carro de boi, nem barcos, ônibus em viagens intermunicipais, bailes nos clubes, o som dos rádios, o bate papo na esquina ou na mesa de bar.
Há muitos anos Clarice não vai a um restaurante. Mesmo se tivesse dinheiro não iria. Pede a comida pelo aplicativo, um lanche barato, em todo lugar agora tem delivery.
Sanduíche de frango, hambúrguer, pastel, coxinha, quentinha com frango a parmegiana, sarapatel, macarrão à bolonhesa.
Termina não saindo caro, além do mais ganha mais tempo pra navegar.
Navegar é preciso, sair de casa não é mais preciso.
Pode ficar entre quatro paredes, sabendo o que acontece na China, na Rússia, na Ucrânia, nas escolas de Santa Catarina. Só precisa mesmo do santo aparelho.
Com ou sem pandemia aprendeu a viver consigo mesma.
Nem amor faz mais, pra quê?
Tem orgasmos com as curtidas, muitas, milhares, milhões.
Tem mais amigos do que Roberto Carlos.
Seguidores por todo planeta.
Se cada um mandasse um real, Clarice ficaria mais rica do que o Neymar. Sem precisar cair ou fazer amizade com milicianos.
Têm cantores de uma música só, cineastas de um único filme, políticos com o mesmo discurso, sempre, integrantes de igrejinhas literárias que se masturbam, intelectualmente.
Não precisa de nada disso. O mundo está literalmente em suas mãos.
Basta um clique e descobre a idade de Julia Roberts ou Sandra Bullock.
É fácil saber a cidade em que nasceu Euclides da Cunha e Monteiro Lobato, em que ano eles morreram.
Cangaceiros, cachaceiros, sonhadores, pensadores, cachorros, cães, gatos, ratos, doenças, cura. Orações, recordes nos esportes, classificação da série B, classificação da série A, os artilheiros, os patrulheiros, os índices de violência, a sabedoria das criança, as cataratas, os quilômetros daqui até acolá, bibliotecas, dicionários, todas as palavras estão agora ao meu, ao nosso alcance.
Clarice, Clarice, Clarice.
São muitas e somente eu. Até uma missa inteira, qualquer preleção posso acompanhar do quarto. Recostada na cama, protegida entre lençóis, só de calcinha, o celular, sagrado, na palma da mão.
Existem mundos, estrelas, galáxias, super heróis?
Tudo foi ampliado e reduzido. Somos agora apenas pontos. Na verdade sempre fomos. Mas não era tão evidente. Eles, os pontos, não cabiam em telas tão pequenas.
Corriam na relva. Nadavam nas águas, sentavam em cadeiras de balanço, circulavam por ônibus elétricos, metrôs e, no passado, trens.
Agora os pontos são pontinhos. Vai chegar o dia em que serão como átomos. Seremos todos invisíveis.
Nem felizes nem infelizes, como Clarice, e isso pouco importa.
Importante mesmo é o futuro, que não é mais abstrato, chegou, se fez presente, passado; tudo no mesmo espaço tempo. Mas esse não é um raciocínio baseado na física, na química, em equações matemáticas, Clarice nem estudou.
Aprendeu tudo nas redes sociais. Hoje sabe mais do que Sócrates, Aristóteles, Bertrand Russell, Marilena, Cortella e Karnal, juntos.
A hora da estrela, a hora de Clarice, a hora de viver - sem precisar viver -, o admirável mundo novo, o mundo de Orwell ou da senhora Atwood.
Há vida. A vida no celular me basta, é assim. "Cada coisa tem um instante em que ela é". Eu, Clarice, já me apossei do É da coisa.
*Ilustração: Olhar Digital