No
dia 21 de dezembro passado fizemos aqui a análise de dois filmes, um deles, o
excelente Dois Papas, dirigido pelo
brasileiro Fernando Meirelles. Ontem (4), Frei Leonardo Boff, um dos maiores teólogos
do mundo, amigo tanto do Papa Bento XVI, quanto do Papa Francisco, publicou um
texto com suas impressões do filme da plataforma americana Netiflix. Como é da
área e conviveu com os dois Bispos de Roma, Boff tem bastante propriedade para
opinar. Vejamos abaixo o seu texto:
Por Leonardo Boff
Acabei
de assistir o filme do consagrado cineasta brasileiro Fernando Meirelles: Dois Papas.
Considero
o filme técnica e esteticamente bem elaborado, feito nos próprios espaços
grandiosos do Vaticano. Sua base é fundada em fatos históricos, evidentemente,
com a criatividade que este tipo de arte permite, particularmente na construção
dos diálogos. Mas neles se entrevê suas respectivas teologias e afirmações
conhecidas.
O
que digo é opinião estritamente pessoal. Tive o privilégio de conhecer a ambos
os Papas pessoalmente e com os quais entretive e entretenho relações de certa
proximidade e até amizade.
O Papa Ratzinger: finíssimo e rigoroso
Com
o Prof. Joseph Ratzinger tenho uma
dívida de gratidão por ter apreciado minha tese doutoral sobre “A Igreja como
Sacramento Fundamental no Mundo secularizado”, volumosa, mais de 500 páginas
impressas. Ajudou-me financeiramente com uma soma considerável de marcos e
encontrou um editora para sua publicação, pois ninguém queria assumir o risco
de lançar um livro desta proporção. A acolhida na comunidade teológica
internacional foi grande, considerada uma obra fundamental, especialmente pelo
renomado especialista em Igreja Jean Yves Congar, dominicano francês.
O
Prof. Ratzinger é uma pessoa finíssima no trato, extremamente inteligente e
nunca o vi alçando a voz; mas é muito tímido e reservado.
Ao
saber de sua eleição a Papa, logo pensei: “É um Papa que vai sofrer muito, pois
talvez jamais tenha abraçado pessoas, mesmo uma mulher e se exposto às
multidões”.
Nossa
amizade se fortaleceu porque durante cinco anos, a partir de 1974, toda semana
de Pentecostes (por volta de maio) cerca de 25 teólogos e teólogas
progressistas, renomados do mundo inteiro, nos encontrávamos em Nimega na
Holanda ou em outra cidade europeia. Durante uma semana discutíamos
ecumenicamente, acompanhados por um pequeno grupo de cientistas, inclusive de
Paulo Freire, sobre temas relevantes do mundo e da Igreja. Editávamos uma
revista Concilium que se publicava em 7 línguas que ainda continua a
ser publicada (no Brasil pela Editora Vozes). Ai colaboraram as melhores
cabeças mundiais, nas várias áreas do conhecimento que vai da sexualidade, da
Teologia da Libertação, à moderna cosmologia.
O
Prof.Ratzinger sentava-se quase sempre ao meu lado. Depois do almoço enquanto
quase todos tiravam uma sesta eu e ele passeávamos pelo jardim, discutindo
temas de teologia, nossos preferidos, Santo Agostinho e São Boaventura dos
quais li praticamente toda obra.
Cada um com seu papel sem perder a
relação
Feito
Cardeal e Presidente da Congregação para a Doutrina da Fé, teve a ingrata
missão de me interrogar sobre o livro Igreja: carisma e poder em 1984. Ele
cumpria institucionalmente sua função de interrogador e eu de defensor de
minhas opiniões. Foi um diálogo firme, mas sempre elegante da parte dele, mesmo
quando, após o interrogatório, tivemos um encontro já mais duro com ele e os
Cardeais brasileiros Dom Paulo Evaristo Arns e Dom Aloysio Lorscheider que me
acompanharam em Roma e testemunharam a meu favor. Éramos três contra um. Devo
reconhecer que ele se sentia constrangido.
Depois
de um ano, recebi a solução do processo doutrinário com a deposição da cátedra
de teologia, de minhas funções na Editora Vozes e a imposição de um “silêncio
obsequioso” que me impedia de falar, de ensinar, de dar entrevistas e de
publicar qualquer coisa. A decisão final após o interrogatório foi feita por 13
cardeais (13 para desempatar). Soube mais tarde, através de um emissário de seu
secretário particular que ele, Card. Ratzinger, votou a meu favor mas foi voto
vencido. Cabe dizer que sempre que jornalistas perguntavam a ele sobre mim,
respondia, com certo humor, que sou “ein frommer Theologe”( um teólogo piedoso)
que um dia vai aprofundar seu verdadeiro caminho teológico.
O
filme não retrata a figura fina e elegante que o caracteriza. Em certa cena,
levanta a voz e quase grita, o que, me parece, totalmente inverosível e contra
seu caráter.
Apesar
de estarmos agora em situações diferentes, ele Papa e eu um teólogo promovido a
leigo, nunca perdemos a amizade. Por seus 90 anos, ao ser organizada uma Festschrift (um livro de homenagem), na
qual muitos notáveis escreveram, a pedido dele solicitaram-me que escrevesse
meu testemunho a seu respeito, o que fiz, prazerosamente. A amizade é mais
forte que qualquer doutrina sempre humana.
O Papa Francisco: terno, fraterno e
inovador
Com
referência ao Jorge Mario Bergoglio,
agora Papa Francisco, diria o seguinte: Conhecemo-nos em 1972 no Colégio Máximo
de San Miguel em Buenos Aires, cada um discorrendo sobre a singularidade do
caminho espiritual de Santo Inácio de Loyola (ele) e o caminho espiritual de
São Francisco (eu). Ai discutimos a vertente da teologia da libertação de tipo
argentino (do povo silenciado e da cultura oprimida) e a nossa brasileira e
peruana (sobre a injustiça social e a opressão histórica sobre os pobres e
afrodescendentes). Deste encontro há uma foto que ele, desde Roma, teve a
gentileza de me mandar, onde aparecemos, todo um grupo de teólogos e teólogas,
a maioria não mais entre nós, alguns perseguidos e torturados pela repressão
bárbara dos militares argentinos ou chilenos. Depois nos perdemos de vista.
O Papa Francisco: teólogo da
libertação integral
Soube
pelo seu professor de teologia, recentemente falecido, Juan Carlos Scannone, o
representante maior da teologia da libertação argentina. que Bergoglio entrou
para a Ordem Jesuítica como vocação adulta (era químico antes, como aparece no
filme). Entusiasmou-se logo com a teologia da libertação e aí mesmo fez um voto
que cumpriu sempre, mesmo como cardeal de Buenos Aires: toda semana passar uma
tarde ou mesmo um dia numa favela (villa miseria), sempre sozinho, entrando nas
casas e conversando com todo mundo.
Foi
Superior Maior da Província dos Jesuitas da região de Buenos Aires. Era muito
rigoroso. Aqui teve que enfrentar uma situação gravíssima que carregou no
coração até os dias de hoje: dois jesuitas, o padre Jalish e o padre Yorio (que
conheci pessoalmente em Quilmes) viviam numa favela, apoiando os pobres e
marginalizados. Quem trabalhava com o povo, como no Brasil de 1964 (e talvez
também hoje sob o novo governo) seriam considerados marxistas e subversivos.
Eram vigiados pelos órgãos de segurança dos militares. Bergoglio soube que
seriam sequestrados com as torturas que se seguiam. Tentou salvá-los até
apelando ao voto de obediência, típico de sua Ordem, no sentido de abandonaram
a favela para não serem vítimas da repressão.
Eles
argumentaram de forma evangélica: “um pastor não abandona seu rebanho, seu
povo; participa de seu destino; vale mais obedecer ao Deus dos pobres do que
obedecer a um superior religioso”.
Efetivamente
foram sequestrados e duramente torturados. Jalish se reconciliou com Bergoglio
e vive na Alemanha, enquanto Yorio se sentiu abandonado e distanciou-se dele
(morreu no Uruguai, anos atrás). Pude sentir sua amargura pessoal, ao mesmo
tempo que procurava entender o impasse que uma autoridade religiosa, com
responsabilidade, enfrenta em situações-limite. Mesmo assim, Bergoglio escondeu
a muitos no Seminário Maior de San Miguel ou os levou até a fronteira de outro
país para fugirem da morte certa.
O Papa Francisco: o cuidado da Casa
Comum
Ao
ser eleito Papa, voltamos a nos comunicar. Sabendo que havia me ocupado
intensivamente com o tema da ecologia integral, envolvendo a Casa Comum, a Mãe
Terra, solicitou-me subsídios, coisa que fiz com assiduidade. Mas logo me
advertiu: ”não mande os textos para o Vaticano, pois, não me serão entregues (o
famoso sottosedere da Cúria: sentar em cima e esquecer) mas envie-os
diretamente ao embaixador argentino junto à Santa Sé, especialmente aquele que
todos os dias, bem cedo, toma o chimarrão (el mate), comigo”. Assim fiz sempre,
mesmo com textos sobre o Sínodo Panamazônico de 2019. Respondeu várias vezes
agradecendo.
Ao
escolher o nome de Francisco sob inspiração de seu amigo brasileiro, o Card.
Dom Cláudio Hummes que lhe sussurou logo fazer uma opção clara pelos pobres,
ele se transformou. O rigor jesuítico se uniu com a ternura franciscana. Com os
problemas internos da Cúria, a pedofilia, a corrupção financeira dentro do
Banco do Vaticano é extremamente rigoroso. Contrariamente, com o povo é
visivelmente terno e fraterno.
Nenhum
Papa anterior castigou tão duramente o sistema que perdeu a sensibilidade, a
solidariedade com os milhões de pobres e famintos, a capacidade de chorar e que
são adoradores do ídolo do dinheiro. Depredam a natureza e são anti-vida e
anti-Mãe Terra. Não precisamos declarar a que sistema se refere. Sua opção
pelos pobres é altisonante. Tornou-se por suas posturas corajosas face à
emergência ecológica da Terra, ao aquecimento global e à desumanização das
relações humanas, um líder religioso e político. Sua voz é ouvida e respeitada
pelo mundo afora.
Dois modelos de homem e dois modelos
de Igreja
O
propósito do filme é mostrar dois modelos de personagens religiosas e dois
modelos de Igreja.
Primeiramente
mostra como ambos, Ratzinger e Bergoglio. são humanos, profundamente humanos.
Nesse sentido: ambos possuem seu lado luminoso e também seu lado sombrio. O
Papa Bento XVI sua leniência com os pedófilos. Não devemos esquecer que
escreveu a todos os bispos, sob sigilo pontifício que jamais deve ser quebrado,
de não entregar os padres e os bispos pedófilos aos tribunais civis. Isso
desmoralizaria a instituição Igreja. Deviam, sim, confessar-se do pecado e ser
transferidos para outro lugar. O Papa não se deu conta suficientemente de que
não tinha a ver apenas com um pecado perdoável pela confissão. Tratava-se de um
crime contra inocentes que a justiça comum deve investigar e punir. Não se
pensou nas vítimas, apenas na salvaguarda da imagem da instituição-Igreja.
O
Papa Bento XVI colocou-se na esteira do João Paulo II que era moral e
doutrinariamente conservador. Procurou relativizar o arggiornamento do Concílio
Vaticano II (1962-1965). Via a Igreja como uma fortaleza sitiada por todos os
lados por inimigos, vale dizer, pelos erros e desvios da modernidade. A solução
que se propunha era a de voltar à grande disciplina anterior, vinda do Concílio
de Trento (século XVI) e do Concílio Vaticano I (1870). A centralidade era a
ortodoxia e a sã doutrina, como se fossem as prédicas que salvassem e não as
práticas. Nesta linha o Card. Joseph Ratzinger foi rigoroso: mais de 110
teólogos ou teólogas foram condenados, depostos de suas cátedras, silenciados
(no Brasil Yvone Gebara e eu pessoalmente) ou de alguma forma punidos. Um
deles, excelente teólogo, foi condenado sem recebernenhuma explicação. Ficou
tão deprimido que pensou em suicidar-se. Só se curou quando foi à América
Central A trabalhar com as comunidades eclesiais de base.Viveu-se um inverno
eclesial severo.Toda uma geração de padres foi formada nesse estilo doutrinário
e com os olhos voltados ao passado, usando os símbolos do poder clerical. Igualmente, toda uma plêiade de bispos foram
sagrados, mais autoridades eclesiásticas ortodoxas que pastores no meio de seu
povo.
Outro
modelo de personalidade religiosa é o Papa Francisco. Ele vem do fim do mundo,
de fora da velha e quase agônica cristandade europeia. Ele trouxe uma primavera
para a Igreja e para o mundo secularizado.
Primeiramente
inovou os hábitos. Ao negar-se de vestir a “mozzeta” o pequeno manto branco,
cheio de brocados que os papas carregam aos ombros, símbolo do absoluto poder
dos imperadores romanos pagãos, diz o filme claramente : “acabou-se o
carnaval”. Não aceita a cruz dourada, continua com sua cruz de ferro; rejeita o
sapato vermelho (Prada) e continua com o seu velho sapato preto. Não se anuncia
como Papa da Igreja, mas como bispo de Roma e somente a partir daí, Papa da
Igreja universal. Animará a Igreja não com o direito canônico, mas com o amor e
com a colegialidade (consultando a comunidade dos bispos). Em sua primeira fala
pública diz “como gostaria uma Igreja pobre para os pobres”. Não mora no
palácio papal, o que seria uma ofensa ao poverello de Assis, mas numa casa de
hóspedes. Come na fila como os outros e comenta, com humor:”assim é mais
difícil que me envenenem”.
Dispensa
um carro especial e um corpo de proteção pessoal. Mistura-se no meio do povo,
dá as mãos a quem as estende e beija as crianças. É pai e avô querido das
multidões.
Seu
modelo de Igreja é o de “um hospital de campanha” que atende a todos, sem
perguntar de onde vem e qual é sua situação moral. É uma “Igreja em saída” para
as periferias humanas e existenciais. Respeita os dogmas e doutrinas mas diz
claramente que prefere colocar-se vivamente diante do Jesus histórico, opta
pelo encontro direto com as pessoas e a pastoral da ternura. Insiste que Jesus
veio para nos ensinar a viver o amor incondicional, a solidariedade e o perdão.
Central para ele é a misericórdia infinita de Deus. Vai mais longe ao dizer
:”Deus não conhece uma condenação eterna pois perderia para o mal. E Deus não
pode perder. Sua misericórdia não conhece limites”. Por isso chama a todos, uma
vez purificados de suas maldades, para a casa que o Pai e Mãe de bondade
preparou para todos desde toda a eternidade. Morrer é sentir-se chamado por
Deus e vai-se alegre para o Grande Encontro.
Eis
outro tipo de pontificado, outro modelo de ser humano que reconhece que perdeu
a paciência quando uma mulher o puxou e apertou longa e duramente sua mão.
Irritado, bateu-lhe a mão por duas ou três vezes. Mas no dia seguinte pediu
publicamente perdão.
Dois Papas: diferentes e
complementares.
O
Papa Francisco abriu sua inteira humanidade, dando-se o direito à alegria de
viver, de torcer pelo seu time de estimação o San Lorenzo, de apreciar a música
dos beatles até conquistar o Papa Bento XVI a dançar um tango, impensável a um
severo acadêmico alemão. Aqui aparece não o Papa mas o homem Bergoglio que
desentranha humanidade recolhida do homem Ratzinger. Ambos são diferentes mas
se integram na dança de um tango de pessoas anciãs.
O
filme é uma bela metáfora da condição humana, de dois modos diferentes de
realizar a humanidade, que não se opõem mas se compõem e se completam, uma com
a ternura e a outra com o rigor. Vale ver o filme, pois nos faz pensar e nos
oferece lições de mútua escuta, de verdades ditas sem rebuços e de uma amizade
que vai crescendo na medida em que a relação se descontrai de encontro a encontro. O perdão que um dá ao
outro e o abraço final, longo e carinhoso, engrandece o humano e o espiritual
presentes em cada um de nós.
*Leonardo Boff é teólogo,filósofo e
membro da Comissão Internacional da Carta da Terra.
**Fotos da internet
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