O DESPERTAR - Conto inédito de Roberto Almeida


E todo mundo ficou cego, todo mundo enlouqueceu.

Maria, na Assembleia do Reino de Deus, não entendeu nada, só ficou repetindo: "Aleluia, aleluia, aleluia"!

O governador foi lá, cumprimentou os fiéis, rezou, contrito, se curvou perante Deus, homem de família, aleluia!

Bia, nas redes sociais, todos os dias fazia comentários detonando eles, os políticos; criticava tudo, não salvava a pele de ninguém.

Os livros foram abandonados, as bibliotecas perderam a finalidade, bancas de revista fecharam as portas e os quiosques passaram a vender bijuterias.

Ninguém via mais televisão, não se ligava o rádio, não se conversava mais na calçada ou em casa, como antes.

Maria, Bia, Severina, Wilson, Fernando, como uma manada só, vivendo o mundo virtual, opinando sobre qualquer assunto, embora não soubessem absolutamente nada.

A loucura está nas casas, nas ruas, ou escondida em buracos, em retângulos, biombos, mal disfarçada de rebeldia.

Não é a loucura sadia dos que querem mudar o mundo, acabar com a fome e a injustiça.

É a maluquice dos que acreditam no crime, no poder das armas, na mentira, nos homens de bem e suas orações ostensivas, emolduradas nas paredes, como se tivessem brotado do fazer artístico.

Maria, cega como tantos, porém convencida de que nunca ninguém vira com tamanha clareza.

A terra plana, o perigo das vacinas, a ameaça dos juízes, a ditadura que deixa a imprensa divulgar as verdades que doem.

Eles, usando gravatas, foram aos púlpitos, falaram em nome de Jesus e todas aquelas mulheres cegas de amor, companheiras de homens que enlouqueceram em função da pátria simplesmente gritaram, vozes ecoando pelos templos: "Aleluia"!.

Hoje é sábado, amanhã é domingo, um bonde corre em cima dos trilhos e o senhor Jesus Cristo morreu na cruz para nos salvar.

A voz de Vinicius, mais de meio século atrás. Quando ainda havia esperança, as teletelas não tinham dominado o mundo,  a cegueira ainda distante, sem a força dos dias atuais.

É possível fazer amor sem os olhos, com o cérebro corroído?

O ódio pode fazer nascer paixões?

Bia era jovem, a vida pela frente. Podia um dia acordar.

E chamar João, Lucas, Francisco, Isaura, Preta...

O grupo faria uma procissão, ou promoveria uma marcha.

Não para Jesus, mas para dizer não à barbárie, à estupidez, ao discurso hipócrita e medieval dos lunáticos que montaram barracas, invadiram as praças, sedentos pelo passado, pelos homens de farda, por fuzis e metralhadoras usados em nome da paz.

Bia e Fernando podiam formar um casal.

Como os de antigamente. Viver no mesmo teto, ter filhos, mandá-los para a escola e levá-los a passear aos domingos. Nos parques, nas praças, no jardim zoológico.

Deixá-los dar pipoca aos macacos, como naquela música de 1973.

Sim, podia haver um despertar. 

Do fogo, das entranhas da terra, do mar zangado. Homens e mulheres recobrando a lucidez,  jogando fora os óculos de grau.

Um mundo que não precisa mais de oculistas nem de óticas.

Porque ninguém mais está cego.

Fechem os hospícios, pra que porra de Caps?

Não existem mais loucos.

Agora está tudo normal.

No Congresso.

Nas igrejas, nas redações, nos estádios de futebol.

Bia e Fernando formaram um casal, restabeleceram a sagrada família.

Maria, feliz, o sorriso na boca sem dentes, os olhos saltando das órbitas, brilhando. Acordada da longa noite de sono, sem querer abrir mão da senha para entrar no mundo que se anunciava: "Aleluia".

Bia, desperta, sabia que não havia mais necessidade daquela palavra, de igrejas, das armas, dos discursos, de homens engravatados.

As escolas seriam reabertas, os livros voltariam a ser impressos, publicados.  Maria poderia dispensar qualquer tipo de muleta ou cadeiras de roda.

*Ilustração: https://manizalesnaturismo.com/blog/como-despiertar-la-conciencia-y-alcanzar-la-felicidad/

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