Por Roberto Numeriano
A ordem de prisão de Michel
Temer, decretada por um juízo federal, é apenas mais um evento no caudal da
desordem institucional que nos legou o golpe de Estado de 2016. Trata-se de um
sintoma do apodrecimento das instituições brasileiras, desde o momento em que o
arrivismo político do parlamento, a vileza dos corruptos do setor privado e
público, a mídia da casa-grande e o ativismo da casta do Judiciário da direita
decidiu disputar o poder político. Esse processo nos legou um Estado de exceção
cuja natureza se radicaliza quanto mais as diversas forças em conflito
sentem-se ameaçadas em seus interesses pela garantia do quinhão maior do butim
nos escombros dessa guerra de caráter classista, mas também com um lado
criminoso.
A esta altura, quando a
guerra político-ideológica aponta uma metástase no tecido das instituições
(seja internamente às mesmas, seja em suas interrelações estatais), nosso
prognóstico é de que, se o Supremo Tribunal Federal (STF), fundando-se no
primado da lei tantas vezes esmagada na perseguição ao ex-presidente Lula e ao
Partido dos Trabalhadores (PT), não assumir o protagonismo desse conflito, ele
próprio será esmagado pelo monstro criado desde suas entranhas. Tal entidade
teratológica chama-se “Operação Lava Jato”, o maior embuste político travestido
de combate à corrupção na história do país, responsável por arbítrios e perseguição
política contra alvos ideológicos.
Poderia ser um paradoxo
imaginar que o STF vá encarar justamente a criatura que embala os sonhos
autoritários de dez em cada dez fascistas e outros tipos arrogantes que flertam
com a tal “ordem” e “progresso”, “lei” e “pátria”, “Deus” e “família”. Não é.
Somente o STF pode, hoje, enquadrar o arbítrio de procuradores, promotores e
juízes federais, cuja sanha punitivista e arbitrária, persecutória e
ideologicamente inspirada na velha casta de direita deste país escravocrata,
chegou a este ponto de, com a prisão de Temer, buscar emparedar como
instituição justamente o poder que tutela as leis. A “Operação Lava Jato” (faz
tempo) já chegou ao estágio da antiga frase de Luís XIV: “O Estado sou eu”.
A dinâmica da guerra total
(já assumindo um claro conteúdo intraclassista) implica a) no reforço da
deslegitimação de um Executivo incapaz organicamente de articular seus projetos
de lei no Congresso; b) na anomia como algo natural nas relações entre as
instituições; c) na falta de perspectiva quanto a alguma resposta racional aos
problemas sociais e econômicos; e d) na disfuncionalidade típica de regimes
anárquicos.
A conjunção desses efeitos do
golpe de Estado já sinaliza um vácuo de poder que terá num dos atores centrais
da grave crise uma “alternativa de solução”. Dentre os diversos atores desse
caos, a casta militar (onipresença típica de períodos autoritários e de
exceção) vai se projetar naturalmente para ocupar esse vácuo. Sabemos todos o
que significa ditadura militar na história brasileira.
O que fazer? O Supremo (se o
controle do mesmo for retomado por uma maioria legalista e garantista) possui
na Carta Magna de 1988 e em fundamentada jurisprudência os meios e modos de
protagonizar a pacificação das instituições republicanas, a começar por si
mesmo. Começar a partir de suas instâncias significa enquadrar juízes,
promotores e procuradores federais, esses lobos arrogantes famintos por poder
político e palestras caras, além de fascinados por fama midiática. Significa
também decidir sobre a prisão política do ex-presidente Lula, mantido no
cárcere para, em parte, agradar a sanha odiosa da velha direita com suas
legiões de fanáticos evangélicos, católicos hipócritas e inocentes úteis.
O Supremo tem o dever
institucional e moral de protagonizar uma pax
brasiliensis porque, na guerra instaurada de todos contra todos, fatalmente
veremos no horizonte, em breve, a opção autoritária aberta (já vivemos sob um
evidente Estado de exceção). Reinstituir o Estado democrático de direito,
destroçado desde o golpe do impeachment fraudulento para apear o PT do
Executivo, é condição fundamental para possibilitar uma governabilidade básica.
E essa reinstituição da democracia só ocorrerá se o STF frear o ativismo
político criminoso da toga travestida de polícia, juíza e legisladora.
Já há sinais dessa reação aos
abusos e ilegalidades do ativismo jurídico das togas ideologizadas à direita.
Não é tardia. Se o Supremo, até dia desses, foi capaz de rasgar e permitir que
rasgassem várias páginas da bela Carta Magna de 1988 (embarcando demagogicamente
no clamor das turbas fanáticas), não creio que, agora, quando o monstro ameaça
lhe estripar o poder de legislar com justiça, ele vá se deixar imolar pelos
arreganhos fascistas.
*Roberto
Numeriano é escritor, jornalista e pós-doutor em Ciência Política. **Ilustração de Aroeira, reproduzido do site do PT no senado
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