Por Junior Almeida
O
poeta paraibano Chico Pedrosa tem em sua vasta obra um poema de nome “A Briga
na Procissão”, onde narra com muito bom humor uma grande e imaginária confusão
numa encenação da Via Crucis, em sua “Palmeira das Antas”. Segundo o enredo do
causo, Jesus termina preso, porém, sem ser crucificado. A estória é uma das
mais conhecidas do célebre guarabirense e, também foi gravada pelo Cordel do
Fogo Encantado, famoso grupo de Arcoverde, Pernambuco, que se apresenta por
todo Brasil e até em outros países, o que fez a arte de Pedrosa chegar muito
mais longe. É impagável a interpretação de Lirinha, líder do Cordel, ao
declamar a poesia.
Pois
bem, antes mesmo de Chico Pedrosa compor essa maravilha da cultura nordestina,
um episódio semelhante aconteceu nas terras de Capoeiras, e poderia muito bem
resultar numa poesia desse tipo ou mesmo num causo. E não é que resultou? Foi assim:
Capoeiras
ainda era uma simples e atrasada vila que pertencia ao município de São Bento
do Una. Suas poucas vias não eram pavimentadas, saneamento não existia e, ainda
não possuía a chamada “luz de Paulo Afonso”, que consiste na energia elétrica
regular tal qual conhecemos hoje. As poucas ruas da povoação eram iluminadas, naquela
época, por um gerador chamado por todos de “motor”. O equipamento havia sido
instalado por um sujeito de nome “João Virães” e a manutenção, bem como a
incumbência de ligá-lo, quando começava escurecer, pouco antes das seis da
tarde, e desligar por volta dez da noite, era de Luiz da empresa (de luz). Luiz
tinha vindo de São Bento do Una e se casaria mais tarde com Celina de Pedro
Lourenço, deixando seus descendentes por essas bandas. Todas as noites antes de
desligar o gerador em definitivo ele dava um apagão de aviso, para que as
pessoas na rua pudessem ir para suas casas ainda no claro.
Foi
por esse tempo, provavelmente em 1961 ou 1962, que apareceu em Capoeiras dois
frades, mandados à vila pelo Padre João Rodrigues, de São Bento. A missão da
dupla, de acordo com seus superiores eclesiásticos, era de salvar almas e, para
isso atos litúrgicos durante alguns dias da Quaresma daquele ano, segundo
entendiam, seriam imprescindíveis. Missas, confissões, casamentos, batizados,
palestras e até procissão da Via Sacra os dois religiosos realizaram. Como o
lugarejo não tinha um padre fixo morando na comunidade, os dois frades foram
bastante prestigiados em tudo que fizeram. Corria tudo dentro dos conformes,
isso até o último dia que os “enviados de Deus” ficariam na vila. A despedida
dos dois seria à noite, na procissão da Via Sacra, realizada na sexta, uma
semana antes da sexta-feira maior. Assim foi feito.
Aquele dia foi de tempo
fechado, havendo muitas pancadas de chuva. Pela manhã e a tarde chovia e
ventava forte cerca de cinco, dez minutos, e parava, ficando só os relâmpagos,
ventos e trovões, anunciando que viria mais água do céu. Pouco tempo depois,
tudo se repetia. O tempo instável e o consequente medo das pessoas por conta da
chuva, fez com que pouca gente fosse no horário marcado para a igreja. O clima chuvoso e a pouca quantidade de gente
atrasou a procissão, que tinha saída em frente à Matriz de são José prevista
para as 19 horas.
-E
o povo daqui é como bode, que tem medo d’água?! Perguntou
um dos religiosos.
Era
quase nove da noite quando um dos frades, o mais novo dos dois, barbudo e
careca, achou que já tinha chegado gente suficiente e começou a rezar. A
primeira estação da Via Dolorosa foi justamente na calçada da igreja. O outro
religioso, que usava óculos e era mais alto e mais velho, com os cabelos já
“alinhavados” de branco, não acompanhou a procissão. Ficou descansando das
muitas atividades do dia dentro da matriz. Na terceira estação, quando, segundo
a tradição, “Jesus cai pela primeira vez”, um vento forte e úmido apagou todas
as velas das lamparinas improvisadas pelas beatas e também derrubou um franzino
jovem que segurava o estandarte com a imagem de São José. Esse pé de vento
anunciou o que estava por vir. A bandeira do santo diante da ventania funcionou
como uma pipa, e o rapaz que segurava lascou-se no encharcado chão de terra
batida, ficando todo sujo de lama. Quem pôde o acudiu.
Todos
se entre olharam meio que assustados. Os trovões e relâmpagos fazia medo a
todos, mas pela fé, e até mesmo para não demonstrar moleza, ninguém arredava o
pé da rua. E a procissão seguiu. Já se aproximava das dez horas, pois as luzes
piscaram. Era o aviso que o motor seria desligado e em pouco tempo ficaria tudo
no escuro. Não demorou muito e uma chuva de vento começou, apagando novamente
as velas que tinham sido acesas de novo.
Mesmo na penumbra, instintivamente as mulheres se preocupavam mais em
segurar as saias, do que com as velas, pois o vento vinha de todas as
direções. Um grande guarda-chuva foi providenciado para proteger o padre e os
papéis das leituras, mas esse vez por outra, por conta do vento, ficava às
avessas. No momento de ler, um homem auxiliava o leitor da Palavra acendendo
seu isqueiro. E a chuva engrossando. Os pingos d’água chegavam a doer na pele.
Era questão de honra e de fé terminarem a Via Sacra, dizia o religioso,
tentando motivar os fiéis.
Mais
à frente, numa rua descida, uma mulher também caiu. Não foi por conta do vento, mas da lama. A
senhora atarracada, vestindo um chamativo vestido verde limão, com um largo
cinto de couro azul e um sapato alto vermelho, deslizou seus pés na lama e caiu
de bunda no chão. Quase faz “um” arte. Por sorte não quebrou nada. Sua gordura
deve ter amaciado a queda. Compadecidos, mais até do que com o jovem que caíra
pouco antes, todos a socorreram. O padre tentava a todo custo incentivar o
povo, e dizia:
-Vamos minha gente. Vamos
mostrar que somos de fé. Mais fortes do que uma chuvinha e um ventinho à toa!
E
tome reza. E tome cânticos. Era como se tal procedimento ajudasse a esquecer ou
espantar a trovoada. No final da ladeira da rua a enxurrada corria atravessando
a via como se fosse um riacho e, as pessoas teriam que passar por lá, pois era
o roteiro da procissão. Dois homens colocaram umas pedras onde tinha mais água,
fazendo uma espécie de passarela. O primeiro a passar foi o frade. Suspendeu
sua molhada batina, pisou numa pedra, n’outra, e passou. O resto do povo fez o
mesmo. Alguns homens, os que carregavam a grande cruz de madeira, por já estarem
molhados e não se acharem seguros em pisar na passarela improvisada, passaram
por dentro d’água mesmo. E o cortejo seguiu.
Já
passava das vinte e duas horas, pois o motor já tinha sido desligado por Luiz
da Empresa, apagando todas as luzes da vila. Ninguém se lembrou em pedir que
ele deixasse o gerador ligado por mais tempo, pelo menos até a hora de terminar
a procissão. Mas com um dia atípico como aquele, pudera. Ninguém se lembraria
mesmo. Na Via Sacra as pessoas tentavam em vão, permanecer com as velas acesas.
Quando começou a leitura da oitava estação, onde diz que “Jesus encontrou as
mulheres de Jerusalém”, a chuva aumentou consideravelmente e relampeou tão
claro, dando a impressão de que um “corisco” tinha caído bem perto, e deu um
trovão tão forte que uma mulher chegou a desmaiar do medo que teve. O frade
percebeu que aquele era o momento de encerrar as atividades. Pelo que entendia
Deus não queria que continuassem e o prudente seria dispersar as pessoas.
-Meus irmãos e minhas
irmãs. Como vocês estão percebendo, Deus não quer que continuemos. É melhor
encerramos por aqui. Amanhã, nós continuaremos e terminamos a Via Sacra.
Disse o religioso.
O
sacristão respirou aliviado, pois estava doido pra correr dali. Ajuntou os
objetos sacros e apressou o passo em voltar. Não deu outra: nas pedras do
riacho, estatelou-se no chão. As pessoas mais atrás só ouviram a zoada da queda
e o grito do cabra. Involuntariamente
o frade caiu na risada, e gritou:
-Tudo
bem por aí?!
Ainda
no chão, o sacristão gemeu, dizendo que tinha caído. Todos encharcados voltaram
sob muita chuva, relâmpagos e trovões para igreja, onde o frade mais velho já
os esperava. No templo todos foram contar os apuros que tinham passado. O frade
molhado parecia prestar conta ao seu superior, dizendo inclusive das quedas das
pessoas. O religioso que tinha ficado na igreja, lembrando-se que na sua
juventude já tinha passado por algumas situações parecidas, sarcasticamente
perguntou:
Ué,
e quem cai na Via Sacra, não é Jesus?
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