Existe uma disciplina chamada
“Arqueologia literária”, no âmbito dos estudos
bíblicos, cujo objetivo é fazer um estudo comparado das escrituras
sagradas, no hebraico, aramaico e latim. A ideia é através da comparação,
estabelecer a autoria, a autenticidade e o sentido das narrativas bíblicas. Ela
faz parte do que se convencionou chamar de ciências hermenêuticas.
Há várias
formas de interpretação desses textos. Temos uma hermenêutica liberal, uma
ortodoxa e uma terceira que faz uma revalorização do profetismo como fonte de
reflexão teológica. Isto porque se encontra justamente nos profetas do velho
testamento os germes, os indícios do protesto social, da indignação humana
contra todas as formas de injustiça social.
É da voz (e da pregação de Isaias,
Amós, João batista e outros que os neo-ortodoxos extraem hoje o material de sua
exegese dos textos bíblicos. A interpretação ortodoxa das escrituras é a mais
conservadora, mais fundamentalista e alheia aos problemas da vida profana.
É esse ramo da exegese
bíblica que mantém mais afinidades com o judaísmo, entendendo-o como irmão mais
velho do Cristianismo.
A interpretação
ortodoxa ignora toda a complexidade hermenêutica do estudo e da compreensão
desses textos, e tende a uma leitura literal, sem atentar para o fato de que o
livro sagrado do judaísmo e que compõe parte da ortodoxia religiosa dos
cristãos é um compósito de várias narrativas, de autores diferentes, de épocas
diferentes e que contém narrativas extraordinárias, que se não forem lidas como
alegorias edificantes, podem se tornar fonte de credulidade ou ignorância.
A reinterpretação dos
textos vestutestametários foi feita de inúmeras formas e com objetivos muito
diferentes. A mais problemática, com certeza é aquela feita por ramos ou
denominações da igreja reformada, como por exemplo o pentecostalismo e o
neopentecostalismo (que aliás não se reivindicam do legado de Cristo ou do
cristianismo), em sua origem anglo-saxã. Não é segredo para ninguém que o
primeiro a fazer isso foi Martinho Lutero, ao negar a importância da
intermediação da Igreja romana na interpretação dos evangelhos e ressaltar o
livre exame das escrituras por cada fiel ou crente.
No entanto, quem iria
extrair todas as consequências dessa nova exegese seriam os evangélicos
norte-americanos e a sua ênfase no papel do indivíduo e suas ações na salvação
da alma. Enquanto os cristãos romanos e ortodoxos se ativeram à ética das
convicções, os evangélicos passaram direto para uma ética das consequências,
afirmando que o crente se salva pelas obras e o resultado de suas ações, independentemente
do contexto social. E a manifestação da graça divina está nos sinais de
prosperidade material do fiel.
Quanto mais rico, mais próspero e abonado, mais
abençoado por Deus. Surgia aí uma nova moral, a moral puritana do trabalho. E
uma nova teologia, a teologia da prosperidade.
Naturalmente que o pano de fundo de tal teologia era a sociedade
norteamericana e o modelo de sucesso, “o american way life”.
A transposição dessa
teologia da prosperidade para o Brasil enfrentou certas dificuldades em razão
da forte e prolongada hegemonia da Igreja Católica e sua doutrina do “justo
preço” e o desprezo pelo acúmulo dos bens materiais. Mas com a crise do
catolicismo e a proliferação dos cultos evangélicos, sobretudo nas comunidades
pobres e desassistidas das periferias, esse discurso caiu como uma luva no
desespero e na orfandade religiosa das classes mais pobres.
Marx se referia à
religião como o “ópio do povo” e Freud, como espécie de neurose ou infantilismo
nas pessoas piedosas. Hoje, é preciso atualizar o sentido dessa crítica. O discurso do enriquecimento fácil e do acesso
ilimitado aos bens de consumo duráveis divulgado por essas igrejas
evangélicas tornou-se uma nova forma de
alienação política e econômica, transformando-se num imenso obstáculo para a
pregação socialista e republicana no Brasil.
*Michel Zaidan Filho é cientista político e professor da UFPE.
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