Jorge
Amado publicou “Dona Flor e Seus Dois Maridos” em 1966, dois anos depois do
golpe militar.
Dez anos
depois o romance receberia uma ótima adaptação para o cinema, pelas mãos do
diretor Bruno Barreto, com José Wilker interpretando com maestria o malando
Vadinho e a linda Sônia Braga vivendo o papel de Dona Flor.
Alguns
livros de Jorge, caso de Dona Flor, Gabriela, Tieta e Tereza Batista, ao serem
adaptados para o cinema ou televisão, ficaram marcados pela carga erótica,
ressaltada a sensualidade e a beleza dos personagens femininos.
A obra
do escritor baiano, porém, composta por quase 50 romances, vai muito além desse “exotismo
tropical” que encantou não só brasileiros mais leitores de todas partes do
mundo.
Jorge
foi um dos poucos brasileiros que teve seu nome lembrado mais de uma vez para
receber o prêmio Nobel de Literatura, que seria muito justo.
Começou
a publicar seus livros muito jovem, antes dos 20 anos e produziu até quando já tinha passado dos 80
anos, com obras relevantes como Jubiabá, Capitães de Areia, Tenda dos Milagres,
Tocaia Grande, Seara Vermelha, Os Velhos Marinheiros, Pastores da Noite e
Subterrâneos da Liberdade.
Enquanto
esteve ligado ao Partido Comunista Brasileiro, fez proselitismo político em
alguns livros, chegando a escrever uma biografia de Luís Carlos Prestes que
não corresponde à realidade do que foi o líder de esquerda.
Tanto em
o Cavaleiro da Esperança, como no romance Subterrâneos da Liberdade, Jorge
Amado santificou os comunistas e hoje todos nós sabemos que entre eles havia
pessoas decentes, que acreditavam sinceramente na causa, mas também tínhamos
oportunistas, homens cruéis que no poder não seriam melhores do que os
capitalistas.
O melhor
de Jorge, assim, desabrocha quando ele sai do partidão e se solta completamente
como escritor, escrevendo maravilhas como os citados Gabriela, Tereza Batista,
Tieta e Dona Flor, além de Mar Morto, Jubiabá, Tenda dos Milagres e Tocaia
Grande, excelente romance de 1984.
Dona
Flor está entre os melhores romances já publicados no Brasil e como nos outros
livros em que explora a sensualidade feminina, o autor desmonta de forma
competente a hipocrisia burguesa, mostra a divisão de classes e o
preconceito contra os mais pobres, é simpático aos excluídos de sua época,
inclusive as prostitutas, pequenos comerciantes e donas de casa.
Com
ironia o escritor zomba do pedantismo intelectual, canta a sua Bahia (isso ele
faz praticamente em todos os livros) de forma extremamente poética, demonstra
respeito com as religiões de origem africana e celebra o espírito boêmio e
carnavalesco do brasileiro.
Em Dona
Flor, Vadinho é um tipo canalha, jogador, traidor, sem responsabilidade com a
esposa ou mesmo a vida. Mesmo assim, é popular, querido, amado, festejado e
quando morre deixa saudades mesmo na mulher que tanto fez sofrer.
Ao casar
pela segunda vez, desta vez com um tipo metódico, organizado, exigente (“cada
coisa em seu lugar”) e honesto, Flor aparentemente consegue o marido perfeito,
depois do caos que foi a vida com Vadinho.
Ela, no
entanto, tanto sente saudades das libertinagens do primeiro esposo que evoca o
morto e o traz de volta ao seu leito, passando a viver em bigamia, traindo o
marido correto e justo com o safado do falecido.
É uma
metáfora para desbancar o “politicamente correto”, uma crítica aos empertigados
que podem tornar a vida muito chata e entediante, com suas manias de perfeição.
Teodoro,
o bom marido, é formal até na hora de fazer sexo, não proporcionando a esposa
os prazeres do mundano Vadinho, que desprovido de qualquer preconceito amava a
mulher por completo, inteiramente nus, livres para soltar palavrões, trocar de
posições na cama a todo momento e soltar ais de gozo à vontade, sem amarras, ideias pré-estabelecidas ou imposições.
O
farmacêutico, segundo homem na vida de Flor, transava praticamente vestido, se escondendo
em lençóis para não mostrar o próprio corpo nem ver o corpo da mulher.
Na sua
cabeça, certas liberdades somente com as prostitutas, “mulheres da vida”, que
recebiam dinheiro por sexo e por isso estavam sujeitas a atos impensáveis de se
praticar com a santa esposa.
Mesmo
que hoje não seja mais como na década de 60, quando foi escrito o romance,
muito preconceito perdura e o desconhecimento em relação ao sexo ainda é
surpreendente, ainda mais que estamos vivendo no Brasil tempos de
fundamentalismo, com a religião se confundindo com os assuntos de estado, nos
levando a um retrocesso não só no campo político, mas também na área do
comportamento e dos costumes.
Jorge
Amado, criticado por suas ousadias desde que começou a publicar livros, nos anos
30, é da linha poética de José Alencar, o grande escritor romântico do século
XIX.
O baiano,
no entanto, foi modernista e pós-moderno, produzindo uma obra vasta,
reconhecida no Brasil e no exterior, embora tenha sido vítima de preconceitos
por não ser um estilista, um erudito, como Machado de Assis, considerado o
melhor escritor brasileiro de todos os tempos.
Jorge
Amado, se não teve a erudição de Machado, o seu refinamento com influências
europeias, foi mais popular, mais brasileiro e brincando com as palavras
produziu pérolas dignas de serem lidas e relidas, se consagrando não
apenas como escritor popular, mas como um talento nato para a literatura, uma
vocação que dificilmente será superada.
Basta um
pequeno exemplo, uma frase, para constatar que Jorge fazia boa literatura: “Vadinho
desertara para sempre do Carnaval da Bahia”, escreve o autor logo nas primeiras
páginas de “Dona Flor”.
Ao falar
da morte do personagem, em plena folia nas ruas de Salvador, o escritor produz
quase um verso, uma ode, bem de acordo com o Vadinho malandro que mesmo morto
vai estar presente na maior parte do livro, com sua capacidade de espalhar
alegria, tal qual o próprio Jorge Amado, autor de livros irreverentes,
irônicos, sensuais, críticos, bonitos como a pele de suas heroínas: Gabriela,
Tieta, Tereza e Flor, esta última tão necessitada de uma vida plena, autêntica,
que precisou ter dois maridos, mesmo um deles já tendo falecido.
*Ilustração: Clube da Poltrona
Nenhum comentário:
Postar um comentário