Por Urariano Mota:
Se
eu fosse supersticioso, estaria meio abalado neste fim de semana. Pelos
seguintes motivos: eu já estava à beira de desistir da coluna de hoje. Estava
completamente vazio, sem assunto, sem prosa, poesia ou rima. Primeiro, pensei
em escrever sobre Humor e Política. Haveria limites para o humor? Fui ao ponto
de rascunhar anotações, que faziam um gancho com os assassinatos dos humoristas
na França. Mas aí aconteceram duas imensas dificuldades: o assunto, como
gancho, parecia ter perdido o seu tempo de abordagem neste 6 de fevereiro.
Segundo, o texto ficou insatisfatório, porque por um lado eu não posso admitir
que exista limite para a criação humana, mas por outro sei que liberdade
implica responsabilidade, e o mais profundo respeito para com os
oprimidos. Então eu fiquei vagando feito alma penada. A razão mais
simples é que eu estava, estou ainda esgotado pelos acontecimentos de hoje.
Passei toda a manhã passeando pelos manuscritos de Dom Hélder Câmara, por seus
livros, com vistas a uma reedição. Tantas coisas vi, e mais que vi, pude
acompanhar a opressão política sobre o espírito rebelde, da pessoa de Dom
Hélder, que amava o espírito santo, inclusive pelo símbolo das asas abertas,
libertadas.
Isso queria dizer,
eu estava rigorosamente sem assunto, esgotado, porque o pensamento divagava em
outra coisa, em outra matéria, de outra maneira, e tudo até há pouco me parecia
ausente de sentido. Então fui para a Wikipédia – esse é meu último recurso,
quando estou perdido e tenho que cumprir uma coluna. Lá na Wikipédia eu vou
porque no calendário do dia eu vejo assuntos e homens públicos, batalhas,
cientistas, escritores, associados ao dia pesquisado. Então fui ao dia 6 de
fevereiro. Nada, quero dizer, nada para o qual eu estivesse preparado, pronto e
em curto tempo, para falar alguma coisa menos trivial ou medíocre. Então
eu fui para o dia seguinte, o 7 de fevereiro. E o que descubro? Estava lá, como
se estivesse à minha espera: Hélder Câmara. Estava e está lá como se aguardasse
e guardasse este dia:
“Hélder Pessoa Câmara
(Fortaleza, 7 de fevereiro de 1909 – Recife, 27 de agosto de
1999)...”
Então ganhei o meu
assunto, o tema e a hora oportuna que eu procurava. Depois de passar o dia
entre os livros de Dom Hélder, de me sentir esgotado pelas coisas que vi, e
quando pensava que estava sem nada mais para falar ou escrever, Helder Câmara
estava à espera. E nem preciso mais me perturbar, porque ele é um dos
verbetes do nosso Dicionário Amoroso do Recife. Meus amigos, eu não sou
supersticioso, sou apenas desconfiado com os acasos que acontecem à
gente. Em resumo: a seguir, para vocês, na letra H do Dicionário Amoroso do
Recife a feliz coincidência deste aniversário de Dom Hélder Câmara.
H
Hélder Câmara
Hélder Pessoa Câmara
sempre recebeu, no amor de toda a gente, o nome de Dom, como se o cargo na
Igreja lhe fosse nome de batismo, como se a posição de bispo e arcebispo lhe
tomasse toda a pessoa. Aliás, no Dicionário Houaiss, como uma prova indireta da
sua glória, para a palavra “dom” a primeira definição é: ecles hist denominação
que acompanha certos cargos eclesiásticos, inicial ger. maiúsc. (D. Hélder
Câmara).
Na verdade, Dom
Hélder Câmara possuía muitos dons além do título na Igreja. Nos 105 anos do seu
nascimento, completados em 7 de fevereiro de 2014, muitas homenagens surgiram.
Pelo tom geral que vimos, quase fazem dele uma nova Madre Teresa de Calcutá.
Ainda que tenha nascido seis meses antes da santa Madre Teresa, há uma
tendência de fazer de Dom Hélder uma ovelha, só mansidão e paz. Mas esta seria
uma boa ocasião de rever os anos de ditadura no Brasil.
Quem foi jovem no
Recife, no Brasil depois de 1964, sabe: Dom Hélder era o arcebispo vermelho, o
perigoso comunista disfarçado em padre, um ilustre morto-vivo cujo nome e fotos
não apareciam nos jornais, apesar de ter sido o brasileiro mais famoso no
mundo, depois de Pelé. A sua prática sacerdotal, em um Recife que vinha da
pedagogia de Paulo Freire, de governos socialistas, longe estava da simples
pregação da caridade, ou de se mostrar superior ao povo miserável. Ao mesmo
tempo, os comunistas jamais pensaram, sequer por hipótese, que o arcebispo
fosse um dos seus. Havia encontros, havia diálogos entre suas políticas, com
mais de um ponto de conflito.
Lembro-me de Dom
Hélder Câmara em duas ocasiões. Na primeira delas, nos anos 70, a repressão
política havia aprisionado vários auxiliares dele, poucos anos depois de haver
assassinado o Padre Henrique, auxiliar direto do seu trabalho na Arquidiocese.
Nessa ocasião, em que o vi pela primeira vez, pude notar um dom desse padre
poucas vezes mencionado. Estávamos concentrados, reunidos em frente ao Palácio
dos Manguinhos, para um protesto. Então Dom Hélder Câmara nos dirigiu uma fala.
E vi, ouvi e notei: Dom Hélder era um orador, um excepcional orador. Franzino,
baixinho, havia um cérebro de pensador na sua voz, um talento de ator que o
fazia crescer com uma dicção a acentuar as palavras conforme o seu desejo. Ele
fazia pausas no discurso, intervalos cujo único fim era imprimir o seu
pensamento em nossos espíritos.
No discurso vivo de
Dom Hélder havia uma chama calorosa, que os crentes e ele próprio diriam ser um
fogo do Espírito Santo, que tomava conta do seu rosto, da sua expressão, de
suas palavras. Com os olhos grados, sem gritar, ele comovia a todos, e para
comover não recuava diante dos motivos mais piegas. Lembro que para falar do
afeto que nos unia aos presos, da nossa comum preocupação, para ressaltar que
éramos solidários, ele fez com que todos cantassem o “Como vai você?”, de
Antonio Marcos, que era sucesso na voz de Roberto Carlos. Confesso que
até eu cantei, com a voz embargada, a canção.
Da segunda vez, eu
não o vi, mas pude ouvi-lo e percebê-lo, no rádio. Quem já leu suas crônicas,
que em boa parte foram reunidas no livro “Um olhar sobre a cidade”, entenderá o
que vou dizer. Para mim, ele escrevia textos modelares de crônica radiofônica.
Nessas crônicas há um escritor, que deveria corar de vergonha muito imortal da
Academia Brasileira de Letras. Nelas, Dom Hélder pega um motivo, um tema de
aparência distante, e traz para o seu texto, com observações poéticas e
líricas, que se aplicam ao cotidiano de todos, intelectuais ou analfabetos,
ateus ou cristãos. Para todos os públicos, valeria dizer. Leiam, melhor
dizendo, ouçam se puderem: “Flores murchas”.
Dom Helder pergunta:
“O que fazer quando as flores murcham?”. E adiante, fere mais fino: “Uma
roseira já me perguntou se eu acredito que Deus ressuscitará também as
flores...”, para concluir: “Os teólogos que me perdoem, se é teologicamente sem
base o que vou dizer: eu não posso imaginar um céu sem flores”.
O
que fazer quando as flores murcham? O que responder a uma roseira sozinha, que
não terá um Deus a seu lado na ressurreição, porque um dia ela será murcha? Eu
não posso imaginar um céu sem flores, respondia o poeta Hélder. Todos nós,
leitores ateus e ouvintes, nisso também acreditamos.
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