Ser bonita era o de menos. Introspectiva, lia livros como se estivesse com sede, fome, sem tesão para o mundo digital.
Como todos, tinha sonhos. Mas um em especial era uma verdadeira obsessão: queria assistir um show de Chico Buarque.
Mocinhas de sua idade gostavam de sertanejos, rock, forró de verdade, falso forró, pop...
Ela amava o artista de olhos verdes, lindo aos 21, aos 50 e aos 80 anos.
Conhecia toda a obra do compositor. Quando ele começou, Clara nem havia nascido, pois só viera ao mundo nos anos 90.
Um dia comprou um som de vinil, e foi à luta para ter todos os discos de Chico.
Como dispunha de recursos, gastou mais de 5 mil nos LPs. Apenas um, raro, lhe custou mais de mil reais.
A Banda, Deus Lhe Pague, Carolina, Pedro Pedreiro, Construção, Apesar de Você, João e Maria, Fado Tropical, Tanto Mar, Cálice, Meu Caro Amigo, O Que Será?, Geni e o Zepelim, Sinhá, Sonho Impossível, Tua Cantiga...
Sabia os nomes de todas as músicas, conhecia as letras, independente da canção ter sido parida na década de 60 ou em 2017.
Morava no Sertão, numa cidade distante da capital. Mas juntou um dinheirinho e esperou o próximo show de Chico em Fortaleza.
E o dia chegou. Enfim o artista resolveu se apresentar na capital cearense.
Clara comprou o ingresso com antecedência, viajou seis horas de ônibus no dia anterior à apresentação e se hospedou na casa de uma prima.
"Felizmente ela também gosta de Chico, vai ao show comigo".
No sábado fazia muito calor, saíram do apartamento logo após às 19h, pegaram um carro de aplicativo e às 20 horas já estavam no teatro.
Chico subiu ao palco antes das 21h, sua voz parecia acariciar os fãs no teatro lotado; desfilava versos bem construídos e a jovem (nem tão jovem assim, não é?) sentiu tanta felicidade que teve a sensação de explodir.
"Os caretas que me perdoem, mas rei mesmo é esse aqui, diante dos meus olhos, como se fosse ficção".
Quando voltasse para sua aldeia contaria aos pais, entusiasmada; conversaria com as amigas, escreveria no diário, talvez fosse até convidada para a rádio da cidade para relatar sua aventura.
Não jogaria pedra em ninguém. E falaria de flores, olhos nos olhos, durante meses.
Lera um conto de Clarice, anos atrás, contando a história de uma mulher apaixonada pelo Roberto.
Sentia-se como o personagem. Só que o seu amor era (é) o Chico.
"Que olhos verdes lindos! Quanta sensibilidade, homem inteligente, consciente. Tem, eu diria, responsabilidade social, compromisso com o seu tempo".
Foi o melhor dia (noite) de sua vida. Ouviu cada música como se fosse a última, bebeu as palavras, se embriagou de versos e se vestiu de música disposta a nunca mais trocar de roupa.
À noite, ainda na casa da prima, teve um sonho que foi como uma extensão do maravilhoso, divino, show de Chico.
O cantor e compositor era jovem, lindo, lindo, lindo.
Recebeu o convite para acompanhá-lo em uma de suas visitas a Paris.
Conheceu o apartamento dele na capital francesa, tomaram um vinho, trocaram um beijo longo e gostoso, sentiu a mão acariciar seu corpo, foi ao êxtase, nos braços do Deus carioca, brasileiro, português, cidadão do mundo.
Durante o sono, ouvia Sonho Impossível. Quando acordou, inebriada, com vontade de dançar falou consigo mesma:
- Vivi um sonho possível.
E voltou a dormir, feliz.
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