CONTEXTO

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Pesquisas Eleitorais

CRIME NA FARMÁCIA - Um conto de Roberto Almeida


Dedicado à memória de José Cavalcanti. 

À Joselita, Josevalda e Joselma, com todo carinho. 

 

O ônibus chegou ao ponto de parada e Augusta desceu, duas malas na mão. Era final de tarde em Nossa Senhora do Rosário, o céu estava bonito, limpo, muito diferente daquele céu cinza de São Paulo, que observara com um toque de tristeza, apenas dois dias atrás.

Ficou olhando a praça, recuperada e bela, a mais bonita das praças das cidadezinhas do interior, segundo a irmã dissera em uma das cartas (no tempo em que ainda se mandavam mensagens pelo correio). Olhou também a igreja matriz, imponente ainda, como na infância, a velha torre apontando para o alto e mandando mensagens para Deus.

Do outro lado, vislumbrou a casa da mãe, sem alterações na fachada, e o prédio da farmácia, remodelado pelos novos proprietários.

Neste momento, Augusta, sempre tão forte, não conseguiu conter a emoção, deixando escapar algumas lágrimas que passaram despercebidas aos transeuntes. Então, tudo veio novamente à mente, como num filme.

Francisco Cavalcanti de Albuquerque tinha 33 anos, a idade de Nosso Senhor Jesus Cristo. Era considerado por alguns moradores de Rosário, especialmente o povo simples dos sítios, como uma espécie de santo. Não escolhia hora para atendê-los, sempre com uma paciência infinita, tratando todos, por mais humildes que fossem, com uma dose forte de carinho.

A farmácia de Chico Cavalcanti era a única de Rosário e com frequência era transformada também em ambulatório, hospital, clínica de urgência. Recorriam aos serviços do bom homem as mulheres com recém-nascidos doentes, bebês queimando em febre ou acometidos de diarreias; mulheres grávidas que teriam complicações no parto, homens com dores fortes no estômago e até adolescentes angustiados com um cancro ou uma dolorosa gonorreia. 

Garanhuns e Caruaru não ficavam tão próximas. Para chegar numa daquelas cidades precisava gastar o dinheiro da passagem, às vezes do médico, era muito mais fácil e econômico recorrer ao seu Chico da Farmácia, que não cobrava nada e sabia mais das coisas do que muito doutor diplomado. 

Francisco Cavalcanti, assim, era querido, tinha amigos, admiradores, pessoas capazes de reconhecer a bondade e o sentimento de justiça do homem. Pois Chico da Farmácia não gostava de injustiças, violência, roubos, gente metida e corrupção na política ou em qualquer outra atividade. Imaginava um mundo melhor, em que houvesse distribuição de renda, todos com direito ao pão e à terra.

Por conta dessas ideias, ainda mais num tempo daquele, não faltou quem visse em Chico Cavalcanti um comunista. Mesmo antes de ele fazer uma tentativa de entrar na vida pública, tentar chegar à prefeitura de Rosário pelo partido que combatia a ditadura. Naquela época, Marcos Freire despertava esperanças nos jovens e Arraes era um mito ainda no exílio.

Francisco disputou a eleição sem recursos, com o coração puro, aguentando com serenidade as críticas e as calúnias dos adversários. Era um homem de muita fé e convicção, não iria se abalar assim tão fácil com acusações levianas atrás do poder pelo poder, gente ambiciosa, movida pelo desejo de mandar e ter cada vez mais dinheiro.

Mas o povo, na maioria das vezes, é iludido por qualquer coisa, prefere a ilusão, acreditar nas promessas dos espertalhões, cede a uma oferta passageira, ama estranhamente os tiranos ou vende sua honra por qualquer migalha. Por isso que os puros com frequência se dão mal no jogo do poder.

Chico da Farmácia perdeu, porém aceitou a derrota com dignidade e nem o episódio eleitoral mudou o homem, que continuou a servir da mesma maneira, no seu estabelecimento, na Rua da Matriz. Virou a página e se voltou para a família, um pouco desnorteado, com essa história de sair pelo mundo em busca de votos.

O pai de Francisco, já velho, perdia a paciência, se tornava ranzinza, tanto que às vezes espantava os fregueses. A mulher, revoltada com a ruindade do povo pobre do lugar, atendia na farmácia com discriminação. As filhas ainda eram pequenas, requeriam muitos cuidados: Amanda, a mais velha, com 12 anos, sabida, determinada; Augusta, a do meio, 11 anos, sapeca, bonita; Amália, 10 aninhos, sua caçula, meiga e frágil, a que herdara mais a índole de Francisco Cavalcanti Albuquerque. 

A vida, assim, seguia o ritmo normal e ninguém poderia esperar que algo de extraordinário acontecesse. A rotina na casa de Francisco e Edilma Cavalcanti estava traçada e nem a política conseguira afetá-la. 

Por esses tempos, no entanto, surgiu um problema envolvendo outras pessoas da família. Um irmão de Chico da Farmácia, Amaro, que morava em Quatro Bocas, se desentendera com o Sargento, um tipo rude, casado com Leonor, sobrinha dos Cavalcanti. Tudo porque o militar reformado estava de olho na enteada, desrespeitando a mulher e os outros integrantes do clã. 

Amaro, esquentado, ameaçara o indecente, chegara até, parece, a dar uns trancos no Sargento inescrupuloso. Agora o homem estava uma fera, com os brios feridos, anunciando abertamente que iria matar os irmãos Cavalcanti, não deixaria ninguém da família em pé.

Ruídos desse entrevero chegavam à casa de Francisco, assustando as meninas, a esposa, o próprio Chico preocupado. Aconselhava calma e pretendia ter uma conversa com Sargento, sugerir a ponderação, resolver o impasse através do diálogo. Achava que o problema poderia ser contornado sem brigas maiores.

Depois de alguns dias nesse impasse, sem uma solução capaz de tranquilizar Edilma e as filhas e o próprio Francisco, chegou o Sargento em pessoa na casa do farmacêutico para uma conversa. Educado, como sempre, o irmão de Amaro convidou o militar reformado  a tomar uma sopa, um café. 

Os Cavalcanti jantaram em paz, Francisco procurando convencer o Sargento da inutilidade daquela quizumba, apelando para o bom senso, chamando o homem à razão. Terminada a refeição, o convidado pediu para se aplicada uma injeção no braço. Alegou umas dores.

Estavam à mesa Chico, Edilma, Anacleto, pai do comerciante, Amanda, Augusta, Amália e o Sargento. O dono da casa se levantou, acompanhado pelo pai,  e foram ao estabelecimento, que ficava ao lado, atender o pedido ao ex-servidor da polícia estadual. 

Na farmácia, Francisco mandou o Sargento sentar  numa cadeira posta na entrada, seu Anacleto ficou por trás do balcão.  calado. Aí, volta Chico com a medicação pronta. chega perto do paciente e antes de poder fazer qualquer coisa recebe no peito, à queima roupa, o primeiro tiro. Depois outro, e outro. O pai, desesperado, tenta socorrer o filho e também é atingido, uma vez, duas.

O Sargento foge, Edilma e as filhas chegam, junta o povo da cidade. Choro e dor. Chico e seu Anacleto estão mortos, no rádio toca a Ave Maria das seis horas e o assassino está longe, atrás de Amaro, pois ele quer cumprir a promessa de varrer os Cavalcanti da face da terra.

Como ainda dói, pensa Augusta, ainda na praça, as malas por um instante no chão, enquanto criava coragem de ir até a casa do outro lado da Rua da Matriz, para rever a mãe.

Agora estava perto dos 40 anos, como as irmãs, sofrera muito, a mãe ficara perturbada com o assassinato do marido, arranjando namorados inoportunos que só aumentaram o sofrimento da família.

Casara, descasara, tivera seus próprios filhos, saíra para Garanhuns, depois Recife, enfim se exilara em São Paulo, destino de tantos nordestinos. O mundo era muito pequeno para abafar ou apagar da memória aquele crime da farmácia. O episódio deixara marcas para toda vida e a revolta permanecera latente. Imagine que aquele infeliz, capaz de assediar a jovem enteada, que matara covardemente dois inocentes, deixando três crianças desamparadas, morrera de velhice, lá pras bandas de Alagoas.

Ninguém, aqui neste mundo, tinha sido capaz de lhe arrancar os olhos, de vingar a maldade daquele ser maldito.

Augusta começou a andar em direção à casa da mãe, lembrou de Amália e Amanda, que iria rever no outro dia, em Garanhuns, prendeu o choro. Levantou a cabeça, altiva, mas triste com os homens e com Deus, lamentando ser tão difícil assim o ato de viver. 

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