Da escritora Martha
Medeiros:
Quando a gente é criança, acha que todo mundo é legal, que
todo mundo é da paz, e de repente começa a crescer e vai descobrindo que não é
bem assim. Eu lembro que, ainda menina, foi um choque descobrir que as pessoas
mentiam, enganavam, eram agressivas. Porque aquelas pessoas não eram bandidas:
eram colegas de aula, gente conhecida. Eu ficava confusa. Fulana era generosa
com os amigos e, ao mesmo tempo, extremamente estúpida com a própria mãe.
Beltrana ia à missa todo domingo e nos outros dias remexia na mochila dos
colegas para roubar material escolar. Sicrana era sua melhor amiga na
terça-feira e na quarta não olhava pra sua cara. Eu chegava em casa, pedia
explicações pra família e recebia como resposta: bem-vinda ao mundo. Eu queria o
impossível: olhar para uma pessoa e saber o que poderia esperar dela. Seria uma
pessoa do bem? Do mal? Viria a me decepcionar? Todas as pessoas decepcionam,
todas cometem erros, mas eu queria encontrar alguma espécie de comportamento
que me desse uma pista segura sobre com quem eu estava lidando. Até que certo
dia fui na casa de uma colega. De repente, precisei ir ao banheiro. Só havia um
no apartamento, e ocupado. Eu estava apertada. Apertadíssima. Minha amiga
sugeriu que eu usasse o banheiro da empregada, topei na hora. E lá descobri que
o papel higiênico da empregada era diferente do papel usado pelos outros
membros da família. Era mais áspero. Parecia uma lixa. Muito mais barato. Era
um costume, e talvez seja até hoje: comprar um tipo de papel higiênico para a
família e outro, de pior qualidade, para o banheiro de serviço. Eis ali a pista
que eu inocentemente buscava para descobrir a índole das pessoas. Hoje, adulta,
sei que descobrir a índole de alguém é um processo muito mais complexo, mas
ainda me surpreendo que algumas pessoas façam certas diferenciações. O
relacionamento entre empregados e patrões ainda é uma maneira de se perceber
como certos preconceitos seguem bem firmes. Não é por economia que se compra
papel higiênico mais barato pra empregada, por mais que seja este o argumento
usado por quem o faz. É para segmentar as castas. É para manter a hierarquia. É
pela manutenção do poder.As pessoas querem tanto acabar com as injustiças
sociais, e às vezes não conseguem mudar pequenas regras dentro da sua própria
casa. Cada um de nós tem um potencial revolucionário, que pode se manifestar
através de pequenos gestos. Comprar o mesmo papel higiênico para todos, quem
diria, também é uma maneira de lutar por um mundo melhor.
Não sou pernambucano. A primeira coisa que percebi quando vim morar aqui é que as empregadas andam sempre no elevador de serviço. Não importa se estão a serviço ou não. A segunda coisa foi a curiosidade de uns em saber meu sobrenome. Depois é que fui perceber que aqui um sobrenome pode influenciar na forma como somos tratados.
ResponderExcluirGustavo.
claudio azevedo - pois eu sou pernambucano e e senti a mesma coisa em São paulo , Santa Catarina , e Rio Grande do sul
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