Do professor Marcelo Ridenti, no jornal Folha de São Paulo:
Se for verdadeiro o adágio de que "o brasileiro não tem
memória", não é por falta de informações e análises publicadas, pelo menos
sobre o golpe de 1964 e o tempo da ditadura. As obras contam-se às centenas,
escritas nos últimos 50 anos por jornalistas, memorialistas, economistas,
sociólogos, cientistas políticos, historiadores e outros, até mesmo das
gerações mais jovens. Talvez nenhum outro período tenha sido esquadrinhado tão
detalhadamente em seus aspectos econômicos, políticos, sociais e culturais.
As interpretações sobre o golpe e seus desdobramentos são
variadas. Algumas enfatizam o tema como indissociável das mudanças do
capitalismo brasileiro, outras centram-se nos impasses do sistema político,
terceiras na cultura política autoritária e conciliadora ou até mesmo na ação
de agentes individuais, ora mirando a especificidade da ação militar, ora suas
conexões com a sociedade civil. Cada corrente analítica aponta deficiências em
suas concorrentes, embora todas busquem evitar simplificações.
Para além das querelas e da especialização das pesquisas, é
importante incorporar as diversas contribuições, compreender a complexidade de
cada conjuntura, a mescla de repressão e busca de convencimento, sem minimizar
as diferenças no interior do regime nem perder de vista um aspecto central: a
ditadura não foi um acontecimento isolado da história do Brasil, antes um
capítulo decisivo do longo processo de industrialização e urbanização
caracterizado pelo que alguns chamam de modernização conservadora, outros de
via prussiana ou revolução passiva.
Trata-se de uma característica da política brasileira até hoje,
em que as classes dirigentes tendem a se recompor e encampar a seu modo a
pressão social por mudanças num país pleno de desigualdades, sem realizar
transformações estruturais, em que o suposto "moderno" se combina com
o dito "arcaico", o "progresso" é indissociável do
"atraso".
O que esteve em jogo no pré-1964 foi a possibilidade de uma
modernização alternativa, cujos contornos estavam apenas esboçados e eram
objeto de disputas políticas, mas o sentido geral era o de alargar os direitos
dos trabalhadores do campo e da cidade, politizando-os e diminuindo as
desigualdades sociais, algo que os conservadores consideravam
"comunismo". No contexto da Guerra Fria --e numa sociedade como a
brasileira, cujos privilegiados são tradicionalmente temerosos dos movimentos
populares--, as reformas de base (agrária, bancária, eleitoral, tributária,
educacional) que estavam na pauta do governo e das esquerdas pareciam
ameaçadoras.
Abriam-se disputas, gerando incertezas sobretudo nas classes
dirigentes, que preferiram apoiar o golpe de Estado, início de um regime que
aprofundou a modernização conservadora, consolidada no período do "milagre
econômico". Ela não sofreu fortes abalos após a redemocratização, mesmo em
governos liderados por partidos com raízes na oposição à ditadura, como o PSDB
e o PT, que em nome da governabilidade fizeram alianças com forças que deram
respaldo ao regime militar, reiterando a tradição conciliadora de negociação
pelo alto, sem rupturas. O custo foi não realizar transformações de fundo, o
que ajuda a entender os protestos multifacetados de junho passado.
Uma bela adormecida em 1984 nas manifestações pelas Diretas-Já
que por encanto despertasse hoje ficaria espantada de ver Fernando Henrique
Cardoso ao lado de Marco Maciel, Lula aliado a Sarney.
O país continua refém das forças que deram o golpe de 1964 e
impedem mudanças que possam aprofundar a democracia política também num sentido
social e econômico, diminuindo as desigualdades. O desafio continua posto, daí
a atualidade da discussão sobre os acontecimentos de 50 anos atrás.
MARCELO RIDENTI, 54, é professor titular de sociologia na
Universidade Estadual de Campinas e coorganizador de "A Ditadura que Mudou
o Brasil"
Muita palavra bonita , que até precisa de auxilio do Sr. Aurelio , mas com conteúdo complexo e sempre puxado para os comunistas , comunistas esses que são tratados pelo professor como simples ideologia de mudança , sei que o futuro é uma incognita mas e se não tivesse avido o golpe ? essa talvez seja a grande pergunta que nunca vai ser respondida .
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