ANGÉLICA - Conto inédito de Roberto Almeida




Pegou as malas, abriu a porta, saiu para o mundo.

O medo a dominava, embora estivesse convencida de que ele dificilmente ia acordar tão cedo.

Fugia em busca da liberdade, livrando-se dos castigos que suportava há 40 anos ou mais

Quando conheceu Gilberto ele não era tão ruim, apenas bruto, como a maioria  dos homens da vila.

Foi num forró, à luz de lampião, pois naquela época poucas casas tinham energia elétrica.

Começaram o namoro, os dois bem jovens. Meses depois estavam casados.

Com papel passado em cartório e passagem pela santa igreja; a mãe e os irmãos acompanhando a cerimônia.

O primeiros anos não foram tão duros. Depois ele começou a beber e foi ficando cada vez mais ignorante, agressivo, reclamando de tudo.  Embora estivesse 24 horas por dia à disposição do homem.

Nascera mais escura do que as irmãs mais novas. Fora batizada com o nome de uma apresentadora loira de televisão, muito querida pelas crianças num tempo em que a TV chegava aos grotões, como a internet nos dias atuais.

Estava mais para parda, sem posses. Só o nome era de mulher branca com dinheiro.

Só que as poucas amigas, as irmãs, a mãe, todos a chamavam de Galega. Outro paradoxo. 

Lógico, desconhecia essa palavra.

Era bonita, olhos e vozes em redor atestavam.

E fosse pelo nome de estrela ou pela beleza de pequena deusa negra, a verdade é nunca sofreu por ter a pele mais escura.

Talvez se tivesse frequentado a escola regularmente, caminhado mais na cidade  tivesse sido empregada no comércio,   teria sentido a discriminanção.  Viu de perto, em ocasiões diversas, amigas sofrerem com o tal preconceito.

Teve três filhos com Gilberto. O marido era ignorante também com os meninos.

Mas um deles morreu antes de completar 18 anos, uma febre estranha que veio e o levou depressa.

Foi a  maior dor que sentiu em toda sua vida.

Os dois filhos que ficaram,  depois de chegar à idade adulta partiram para o mundo, foram pelejar em terras distantes.

E aí ela ficou só, para aguentar as porradas. Sim, porque depois de um tempo ele começou a lhe bater.

Quando Gilberto bebia,  Angélica sofria o diabo.

Tanto ele judiou que uma das comadres, revoltada,  deu parte dele na delegacia.

Foi chamada, mas não teve coragem de confirmar a história.  Então a polícia não pôde fazer nada.

Gilberto ficou brabo, querendo saber quem fizera o enredo; se a mulher tinha participação na denúncia;  mais valente do que nunca.

Os anos passaram, os cabelos ficaram brancos. Completou 70 anos, sem direito a festas.  Com a vida sofrida, parecia ter mais idade.

Sentia uma saudade danada dos filhos, em lugares tão distantes.

Um dia, sem arquitetar, dispensando consultas a quem quer que seja,  tomou uma resolução.

Não estava mais disposta a aguentar tanta judiança.

Começou a juntar uns trocados com o que recebia da aposentadoria.  Um dia de feira foi à cidade e comprou a passagem.

No dia da viagem juntou os trecos, só o que precisava,  e saiu cedinho, como relatado no início.

Chegou na rodoviária não tinha dado seis horas, não demorou muito o ônibus saiu, com destino à região Sul do Brasil.

Lá que os filhos residiam. Avisou a eles na véspera, estavam lhe esperando.

Sabia que a vizinhança ia falar. Não faltaria quem considerasse aquela decisão não planejada um erro.

Como é que uma mulher nessa idade faz um negócio desse? Deixa o marido sozinho, separa sem dar ao menos uma chance?

Não pensara, nem se preocupara com esse tipo de consideração. Queria mesmo era se livrar da cachaça, dos tapas, dos murros, dos empurrões e dos beliscões.

Isso é vida, viver apanhando? À noite sem poder dormir direito, por medo ou assombração, o homem fedendo a aguardente,  por cima dela, querendo que ela atendesse suas necessidades animais de qualquer maneira.

Sem beijo ou abraço, nenhum carinho; vinha como um touro ou,  pior, um jumento; ela que fosse a égua, quieta, sem direito a reclamar de nada.

O ônibus rodou quase dois dias, mas chegou no destino.

Os filhos foram recebê-la na estação. O mais velho com as duas filhas, suas netas, coladas às calças.

O mais novo também já tinha filhos. Quatro netos no total.

De agora por diante ia viver com eles, longe, bem longe.

Nunca mais veria Gilberto. Nem voltaria a sua terra, onde tinha nascido e vivido por mais de 70 anos.

Um dos filhos, de coração amolecido, chorou quando abraçou a mãe e disse o que ela nunca imaginou, principalmente porque tinha agido sem calcular, sem metodologia, sem muito pensar.

- Mãe, a senhora tem muita coragem!

Terei mesmo?

Nunca fora notícia. Nunca as violências de que fora vítima tinham sido relatadas na televisão, como daquela moça que levou 60 murros num elevador.

Sofrera calada, muitos e muitos anos.

Até que tomara a decisão, surpreendendo os vizinhos, os conhecidos, até mesmo os filhos.

Nunca é tarde para começar uma nova vida, pensou, tentando se animar, sem saber verbalizar os sentimentos.

Quem sabe Deus ainda lhe dava 10 ou mais anos de vida e,  nessa nova etapa, com os seus - que lhe tinham amor, sabia -  até podia descobrir que o mundo, a vida,  não é tão ruim assim.

*Imagem: Secretaria de Saúde do Governo do Rio Grande do Sul.

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