Notícia triste: perdi hoje um amigo-irmão. Ele morreu, em Caruaru, ao lado da mulher, Eliézia e dos filhos. Há algum tempo, Rui Lira lutava contra um câncer. Visitei-o, com meu irmão Humberto e o sobrinho Júnior, em março passado, em sua casa. Foi num sábado à tarde, bebericamos café e conversamos por algumas horas, com a assistência diligente de Eliézia. Ele estava em tratamento, bastante abatido, mas lúcido e visivelmente feliz com nossa conversa, que enveredou por filosofia e terminou no tema inarredável da morte, que ele sabia que estava perto e esperava com uma serenidade que eu gostaria de ter, quando chegar a minha vez.
Nos aproximamos na adolescência, no movimento estudantil, meados da década de 60. Participávamos da Uesc — União dos Estudantes Secundaristas de Caruaru, na presidência de Luélcito Cintra. De nossa turma, ninguém era militante de qualquer partido, mas não tínhamos dúvida: nosso lado era o dos oprimidos, dos pobres, dos humilhados e ofendidos, bandeiras que nunca abandonamos, sem nos tornarmos múmias políticas. Quando veio o golpe de 64, a Uesc fez uma assembleia-geral e autodissolveu-se. Por volta de 1967, criamos uma entidade batizada de FEP — Frente Estudantil Progressista. Não tínhamos noção do conceito de frente, nem sabíamos exatamente o que fazer. Agregamos uma vintena de rapazes e moças e nos reuníamos, semiclandestinamente, aos sábados à tarde. Era só conversa, ação zero. Discutíamos socialismo, democracia, comportamento, sob a égide de Eric Fromm, o filósofo que juntou Marx e Freud. A entidade líquida durou pouco, mas serviu para algo: exercemos o companheirismo mais puro e fraterno que se possa imaginar.
Uma tarde fui estudar na casa dele, perto da subida do Morro da Conceição. A mãe saiu e deixou um bolo esfriando no batente da janela. A mesa era encostada. Rui fez uma garrafa de café e me ofereceu bolo. O estudo durou a tarde toda: era um gole de café e uma lasquinha do bolo. Quando dona Nazinha (ou era Lazinha? Ah, memória!) voltou, não havia mais bolo. Durante anos, sempre que eu aparecia por lá, ela perguntava, rindo: “Cadê meu bolo, sujeito?”
Trabalhamos juntos na Rádio Cultura do Nordeste. Depois, vim para o Recife, ele permaneceu em Caruaru. Continuou radialista a vida toda. Primeiro, como locutor esportivo. Uma vez, no Estádio do Arruda, fui até a cabine da rádio, onde sabia que o encontraria. Começou o jogo, ele narrando e nada do comentarista Uaci Matias chegar. De repente, numa pausa regulamentar, ele anunciou: “Com vocês, agora, os comentários de Homero Fonseca”. E me passou o microfone. Atarantado, alinhavei algumas observações sobre o jogo e me safei. E foi assim até o final do primeiro tempo, quando o comentarista titular chegou, explicou o atraso, Rui descreveu o que tinha rolado e o competente Uaci fez lá o comentário do intervalo e assumiu o restante do jogo.
Depois, Rui fez concurso para o Banco do Brasil, virou professor dos cursos internos do banco e morou mais de uma década em Brasília. Foi quando perdemos o contato. Ele voltou a Caruaru, cursou filosofia e atuava como comentarista político da rádio. Durante um tempo, exerceu dois mandatos de vereador pelo PDT e foi secretário de Comunicação e de Governo em uma das administrações de Zé Queiroz.
Há alguns anos, encontrou meu blogue e se reconectou comigo. Com frequência comentava pelo e-mail minhas postagens. Impressionante: concordávamos no essencial e em seus comentários ele sempre acrescentava um ângulo novo ou fazia inesperadas e criativas abordagens sobre os temas.
Apesar de poucos contatos presenciais, mantivemos o fio da conversa e da amizade. Era daqueles poucos amigos que, ao nos reencontrarmos depois de longo tempo, falávamos assim: “Como eu dizendo…”
Rui foi um homem bom e solidário. Fez valer sua passagem na Terra. Sentirei muito sua falta.
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