Tive
a grata satisfação de ler o livro: “Maracatu
Rural – luta de classes ou espetáculo” (Prefeitura do Recife, 2005), da
professora doutora Roseana Medeiros, docente da Universidade Federal Rural de
Pernambuco (UFRPE). Originalmente uma tese de doutorado em Serviço Social, esta
obra aprofunda um veio seminal na carreira da autora, que começou pelo seu
interesse em pesquisar as religiões populares na cidade do Recife. Roseana
Medeiros é uma pesquisadora invulgar e atípica. É uma desbravadora de
fronteiras acadêmicas. Sua atenção sobre a cultura popular (igrejas evangélicas
e o Maracatu) foi mediado por uma interpretação gramsciana da visão de mundo
dos “simples”, ou das classes subalternas – como diz o próprio Gramsci.
O livro da professora é um artefato editorial muito bem
cuidado. Cheio de fotografias, tem uma apresentação gráfica impecável. Bem
dividido em suas três partes (0 carnaval de Pernambuco elege o caboclo de lança
como seu símbolo, Maracatu rural, ritual guerreiro e os conflitos e as
ambigüidades expressas na maracatu rural), a pesquisadora discute os conceitos
básicos que orientaram a sua pesquis;: depois apresenta detalhadamente o
maracatu rural, diferenciando do urbano e da nação (maracatu de baque virado) e
finalmente discute as ambigüidades e os conflitos em que estão imersos essas
manifestações culturais.
O livro vem numa seqüência virtuosa de outras obras que
abordam o maracatu, desde que ele passou a gozar da estima da mídia e dos
políticos de Pernambuco. O trabalho de
Valéria Vicente “Maracatu rural: um
espetáculo como espaço social”, “Reforma agrária no papel – o estudo do
maracatu Leão sem terra”, e claro, de uma
boa bibliografia etnográfica sobre o carnaval do Recife. O livro de
Roseana Medeiros não é o primeiro sobre o assunto. Mas tem uma particularidade:
contém uma fina hermenêutica lúdico-política sobre a visão de mundo dos
trabalhadores rurais, valorizando-a como fonte de identidade e de resistência
diante das injustiças sociais.
O árduo e profícuo esforço de pesquisa documental e
empírica da autora nos convida a refletir criticamente sobre os dilemas da cultura
popular, num mundo cada vez mais assaltado pela indústria cultural, o mercado
de bens simbólicos e o processo de cooptação das elites políticas. Como
sobreviver a tudo isso, mantendo sua integridade artística e cultural, sem
vender a alma ao demônio, em troca de dinheiro e prestigio social!
A propósito disso, a primeira observação que me ocorre é a
famosa tese de Herbert Marcuse, em A
dimensão estética, “o caráter redentor da catarse”. (Tese, aliás, que me
custou um processo judicial do então governador Jarbas Vasconcelos, por
acusá-lo de usar o manguebeat como propaganda política de seu governo,
“Pernambuco é pop!”). Diz o nosso filósofo frankfurtiano que há uma ambigüidade
básica na estrutura da obra de arte: ela denuncia as contradições sociais, mas
ao mesmo tempo – em razão da sua forma estética – nos reconcilia com essas
contradições. Lembro que Roseana utiliza expressões como “catarse” e
“compensação simbólica” oferecidas pelo maracatu aos seus “guerreiros” e
“místicos”. É como se a arte popular transfigurasse – num passe de mágica – a
condição miserável e explorada daqueles trabalhadores, e eles se vissem como
reis e rainhas, cavaleiros e guerreiros e assim por diante.
E o trabalha da pesquisadora procura mesmo ver na
linguagem do maracatu sinais e alegorias desses combates e lutas.
Neste ponto, a antropologia histórica do carnaval ou a
poética do riso, de Bakhtine poderia ter ajudado muito. Tanto quanto os estudos de Carlo Guizburg
sobre o sabá e as bruxas. Ambos exploram as dimensões “satânicas”, “subversivas” dessas manifestações, criando
uma atmosfera de medo e incompreensão por parte da sociedade “normal”.
O caráter redentor da catarse neutraliza – esteticamente-
os efeitos críticos, mais políticos que os espetáculos populares poderiam oferecer.
Como se trata de uma espécie de visão de mundo espontânea, pouco refletida ou
elaborada, ela vem mesclada de outros traços e características nem sempre críticas ou subservisas. O que levaria os
pesquisadores a fazerem a sistematização coerente dessas visões de mundo e, quiçá,
extrair delas um saber ou conhecimento da realidade social, para além da magia
do espetáculo.
Outro ponto é a tendência à negociação de identidades que
se estabelece nessas situações. Aqui a autora é bem cuidadosa quando aponta para
o clientelismo político, a cooptação e a mercantilizarão dessa cultura popular.
Neste aspecto, ela nota uma progressiva mudança do maracatu, como forma de
resistência e identidade coletiva dos
simples, para o chamado “espetáculo” cultural. Tendência marcante nos maracatus
urbanos de baque virado, ela se faz presente também nos de origem rural, de
baque solto. Nessa altura, sua tese
parece a do alemão Habermas sobre o declínio da esfera pública moderna. Há um
forte acento no declínio da autonomia artística e social dos maracatus rurais,
sobretudo a partir da influencia da Federação Carnavalesca de Pernambuco, que
passa a interferir decisivamente na composição e fisionomia do brinquedo
popular. Como condição para desfilar no carnaval do Recife, ela impõe certas
condições que constrangem a liberdade de criação artística dos maracatus
rurais.
Afinal, poderíamos perguntar que rei ou guerreiro é esse –
o caboclo de lança – que virou uma marca da “pernabucanidade” ou da cultura
popular de Pernambuco ou do carnaval de Recife!
- Identidade consumida, massificada, mercadorizada, para ser vendida
como “souvenir” aos turistas que visitam o estado, durante a folia momesca. Fenômeno, aliás, já
ocorrido como o carnaval platinado do Rio de Janeiro, já cognominado “o maior
espetáculo da terra”.
De tudo isso, louve-se o olhar empático de Roseana
Medeiros. Sua pesquisa tem um “Partpris”, uma tomada de posição. Ela quer
resgatar através do texto e da imagem um fragmento da cultura popular, antes de
sua domesticação pelas elites e a indústria cultural. Em seu trabalho, ainda é
possível ver sinais dessa visão de mundo , não contaminada, dominada e
desvirtuada pelo mercado, a mídia e a política.
*Michel Zaidan Filho é garanhuense, cientista político e professor aposentado da UFPE.

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