A PROPÓSITO DE REFLEXÕES SOBRE A CULTURA POPULAR


Por Michel Zaidan Filho

Tive a grata satisfação de ler o livro: “Maracatu Rural – luta de classes ou espetáculo” (Prefeitura do Recife, 2005), da professora doutora Roseana Medeiros, docente da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE). Originalmente uma tese de doutorado em Serviço Social, esta obra aprofunda um veio seminal na carreira da autora, que começou pelo seu interesse em pesquisar as religiões populares na cidade do Recife. Roseana Medeiros é uma pesquisadora invulgar e atípica. É uma desbravadora de fronteiras acadêmicas. Sua atenção sobre a cultura popular (igrejas evangélicas e o Maracatu) foi mediado por uma interpretação gramsciana da visão de mundo dos “simples”, ou das classes subalternas – como diz o próprio Gramsci.
O livro da professora é um artefato editorial muito bem cuidado. Cheio de fotografias, tem uma apresentação gráfica impecável. Bem dividido em suas três partes (0 carnaval de Pernambuco elege o caboclo de lança como seu símbolo, Maracatu rural, ritual guerreiro e os conflitos e as ambigüidades expressas na maracatu rural), a pesquisadora discute os conceitos básicos que orientaram a sua pesquis;: depois apresenta detalhadamente o maracatu rural, diferenciando do urbano e da nação (maracatu de baque virado) e finalmente discute as ambigüidades e os conflitos em que estão imersos essas manifestações culturais.
O livro vem numa seqüência virtuosa de outras obras que abordam o maracatu, desde que ele passou a gozar da estima da mídia e dos políticos de Pernambuco.  O trabalho de Valéria Vicente “Maracatu rural: um espetáculo como espaço social”, “Reforma agrária no papel – o estudo do maracatu Leão sem terra”, e claro, de uma  boa bibliografia etnográfica sobre o carnaval do Recife. O livro de Roseana Medeiros não é o primeiro sobre o assunto. Mas tem uma particularidade: contém uma fina hermenêutica lúdico-política sobre a visão de mundo dos trabalhadores rurais, valorizando-a como fonte de identidade e de resistência diante das injustiças sociais.
O árduo e profícuo esforço de pesquisa documental e empírica da autora nos convida a refletir criticamente sobre os dilemas da cultura popular, num mundo cada vez mais assaltado pela indústria cultural, o mercado de bens simbólicos e o processo de cooptação das elites políticas. Como sobreviver a tudo isso, mantendo sua integridade artística e cultural, sem vender a alma ao demônio, em troca de dinheiro e prestigio social!
A propósito disso, a primeira observação que me ocorre é a famosa tese de Herbert Marcuse, em A dimensão estética, “o caráter redentor da catarse”. (Tese, aliás, que me custou um processo judicial do então governador Jarbas Vasconcelos, por acusá-lo de usar o manguebeat como propaganda política de seu governo, “Pernambuco é pop!”). Diz o nosso filósofo frankfurtiano que há uma ambigüidade básica na estrutura da obra de arte: ela denuncia as contradições sociais, mas ao mesmo tempo – em razão da sua forma estética – nos reconcilia com essas contradições. Lembro que Roseana utiliza expressões como “catarse” e “compensação simbólica” oferecidas pelo maracatu aos seus “guerreiros” e “místicos”. É como se a arte popular transfigurasse – num passe de mágica – a condição miserável e explorada daqueles trabalhadores, e eles se vissem como reis e rainhas, cavaleiros e guerreiros e assim por diante.
E o trabalha da pesquisadora procura mesmo ver na linguagem do maracatu sinais e alegorias desses combates e lutas.
Neste ponto, a antropologia histórica do carnaval ou a poética do riso, de Bakhtine poderia ter ajudado muito.  Tanto quanto os estudos de Carlo Guizburg sobre o sabá e as bruxas. Ambos exploram as dimensões “satânicas”,  “subversivas” dessas manifestações, criando uma atmosfera de medo e incompreensão por parte da sociedade “normal”.
O caráter redentor da catarse neutraliza – esteticamente- os efeitos críticos, mais políticos que os espetáculos populares poderiam oferecer. Como se trata de uma espécie de visão de mundo espontânea, pouco refletida ou elaborada, ela vem mesclada de outros traços e características nem sempre  críticas ou subservisas. O que levaria os pesquisadores a fazerem a sistematização coerente dessas visões de mundo e, quiçá, extrair delas um saber ou conhecimento da realidade social, para além da magia do espetáculo.
Outro ponto é a tendência à negociação de identidades que se estabelece nessas situações. Aqui a autora é bem cuidadosa quando aponta para o clientelismo político, a cooptação e a mercantilizarão dessa cultura popular. Neste aspecto, ela nota uma progressiva mudança do maracatu, como forma de resistência e identidade  coletiva dos simples, para o chamado “espetáculo” cultural. Tendência marcante nos maracatus urbanos de baque virado, ela se faz presente também nos de origem rural, de baque solto.  Nessa altura, sua tese parece a do alemão Habermas sobre o declínio da esfera pública moderna. Há um forte acento no declínio da autonomia artística e social dos maracatus rurais, sobretudo a partir da influencia da Federação Carnavalesca de Pernambuco, que passa a interferir decisivamente na composição e fisionomia do brinquedo popular. Como condição para desfilar no carnaval do Recife, ela impõe certas condições que constrangem a liberdade de criação artística dos maracatus rurais.
Afinal, poderíamos perguntar que rei ou guerreiro é esse – o caboclo de lança – que virou uma marca da “pernabucanidade” ou da cultura popular de Pernambuco ou do carnaval de Recife!  - Identidade consumida, massificada, mercadorizada, para ser vendida como “souvenir” aos turistas que visitam o estado,  durante a folia momesca. Fenômeno, aliás, já ocorrido como o carnaval platinado do Rio de Janeiro, já cognominado “o maior espetáculo da terra”.
De tudo isso, louve-se o olhar empático de Roseana Medeiros. Sua pesquisa tem um “Partpris”, uma tomada de posição. Ela quer resgatar através do texto e da imagem um fragmento da cultura popular, antes de sua domesticação pelas elites e a indústria cultural. Em seu trabalho, ainda é possível ver sinais dessa visão de mundo , não contaminada, dominada e desvirtuada pelo mercado, a mídia e a política. 
*Michel Zaidan Filho é garanhuense, cientista político e professor aposentado da UFPE.

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