Estudar a história social através da
literatura, do cinema ou do teatro é uma experiência fascinante, mas se
constitui numa opção metodológica exigente e sofisticada, que muitas vezes é
identificada à chamada Nova História Cultural, um ramo muito cultivado pela
terceira geração da Escola dos Annales, também designada como
"nouvelle histoire".
Mas é preciso antes de falar sobre a
História Cultural e suas direções, fazer uma menção a Frederico Nietzsche, o
filósofo alemão também conhecido pelo seu nominalismo e a concepção retórica da
História (A Genealogia da Moral e A verdade e a mentira no
sentido extra-moral) .
Foi Nietzsche quem destruiu - na
época moderna - as pretensões de validade moral, cognoscitiva ou estética de
qualquer enunciado sobre o passado, equiparando todos os enunciados a
proferimentos e sentenças a serviço de uma vontade de poder (ou de potencia,
como gostam de falar os nietzschianos) A historiografia
nietzschiana (genealógica) é uma historiografia em perspectiva: nem falsa
nem verdadeira, mas situada em lugar do discurso. O seu conceito de tempo é o
que se chama de "transtemporalidade" (ou atualização): atualizar o
passado no presente e projetar o presente no passado. A rigor, não haveria um
passado: apenas versões diferentes do passado. nenhuma melhor ou mais
verdadeira do que outra.
Entre os autores que cultivam esse ramos da história, há os que defendem uma
história cultural abertamente inspirada no pensamento de Frederico Nietzsche,
como Michel Foucault e Hayden White. Um tipo de história do discurso sobre a
história, perfeitamente cientes da descontinuidade, do acaso e da ausência de
teleologia no processo histórico, tudo conforme a genealogia de nosso
filósofo. Mas há outras formas de história cultural:a de Robert Darton,
influenciada pela antropologia de Clifford Geertz, e a de Carlo Ginzburg e seu
paradigma indiciário, que se situa a meio caminho entre positivismo e
nominalismo. E que toma distância dos franceses e sua "história das mentalidades",
acercando-se do conceito de circularidade da cultura, de Mikhail Bakhtine e
Gramsci.
As escolhas de Simone Garcia Almeida, em sua tentativa de analisar a história
dos ex-escravos africanos no Brasil, a partir do romance "Água de
barrela", tornaram-se mais complexas pela adição das categoria de
"raça" e "gênero", obrigando-a a se definir em face desses
conceitos. Neste ponto, a primeira providência seria
"dessubstancializar" ou dessencializar" esses conceitos. Raça e
gênero não são essenciais ou substancias. São construções históricas e
culturais e por isso precisam ser "desconsconstruidas". Neste
aspecto, aproximamo-nos do pós-estruturalismo e nos afastamos do marxismo. As
feministas contemporâneas tendem a opor o feminismo - como discurso de
emancipação do gênero - aos clássicos da modernidade (Freud, Marx, Durkheim e
de contemporâneos como J. Habermas) e se acercar dos pós-estruturalistas.
É preciso, aqui, evitar uma perspectiva essencialista ou substancialista nos
estudos de gênero e raça. Os atuais estudos sobre etnicidade e gênero estão
hoje numa disciplina chamada de "decolonialismo" ou "estudos
culturais" (Babba, Hall, Fanon, Canclini Said).
As tentativas da autora em analisar o romance ("Água de Barrela")
pelas categorias da "literatura negra" ou literatura
"afrobrasileira" que implicam 'um sujeito negro da enunciação
romanesca' ou uma união virtuosa entre "experiencia da negritude e
escrita", e não apenas aqueles sujeitos que fala em da negritude, sofre
também algumas limitações. Primeiro, temos uma intertextualidade de um discurso
que fala sobre outro discurso que fala de uma narrativa oral sobre opassado da
escravidão. Ora, há os filtros da memória e os silêncios sobre determinados
temas. O passado assim resgatado se apresenta ruinoso e fragmentário. Mas
também tem a questão da posição da narradora do romance (neta da biografada)
Será que ela se encaixa perfeitamente naquelas condições ideais de uma
autora de uma literatu ra negra ou afro -brasileira? Ou não seria este mais um
discurso militante ou empenhado sobre a negritude? Não haveria por dela
um tom celebrativo nietzschiano sobre a ancestralidade africana no presente da
autora?
Depois vem o discurso da autora da tese sobre o romance. Parece haver aí uma
tendencia descritiva, convalidatório, acrítica, entrecortado de citações
e trechos da obra, sem nenhum distanciamento crítico, quase como que
aderindo tacitamente ao trabalho da escritora.
Longe de mim negar a importância do resgate desses relatos e narrativas para a
construção de uma identidade social, coletiva da mulher, da mulher negra,
escrava ou ex-escrava no Brasil, ainda hoje submetida à dominação sexista
de machos brancos ou pardos, ricos ou pobres. Mas, a menos que desejemos adotar
conscientemente a visão nieztschiana do passado, numa versão militante e
celebrativa da escravidão africana, terminaríamos por endossar simplesmente uma
visão ingênua e pouco crítica da história.
É preciso não fazer da necessidade virtude metodológica ou construir uma nova
mitologia positiva do genocídio ou do massacre do povo africano (aliás, povo
não imune a contradições internas, de violentas lutas tribais e de clãs e
nações distintas, como bem mostrou a dificuldade de construção de Estados
nacionais ou do socialismo no continente africano).
*Michel Zaidan Filho é professor aposentado da UFPE e cientista político.
Quanto lixo esquerdopata em tão poucas palavras!
ResponderExcluir