Por Michel Zaidan Filho*
O ex-secretário de Turismo,
da Prefeitura do Recife, Alfredo Bertini, afirmou que o principal produto
turístico a ser vendido aos visitantes
do mundo inteiro, na cidade maurícea era o carnaval. Daí os patrocínios
milionários e o intenso marketing feito no período da folia momesca. A
preparação e a realização do carnaval recifense tornou-se uma das ações
administrativas mais importantes no bojo dos planos de desenvolvimento
econômico das últimas gestões municipais. Pode-se, então, dizer que a folia
carnavalesca é ainda uma festa popular ou que conta com a participação maciça
do povo recifense? Ou ela foi deslocada das passarelas para ser mera
coadjuvante ou expectadora dessa grande festa? – Qual deveria ser a política
cultural de uma gestão democrática e popular para o carnaval do Recife?
O primeiro ponto a considerar neste
debate é a natureza mesma dos festejos carnavalescos no âmbito de uma
antropologia cultural em torno do riso e do grotesco ou alegórico. Há quem
afirme ser o grotesco um profundo traço cultural da mentalidade do povo
brasileiro (Muniz Sodré). Mas o
grotesco pensado como crítica, inversão, escárnio em relação ao poder e
aos poderosos., tal como os rituais profanos da
semana santa (a malhação do judas). Se isso é verdade, o Carnaval é, por
excelência, uma manifestação popular e desordeira, irreverente, crítica. Uma
imensa alegoria do desejo (reprimido) de insatisfação e revolta do existente na
vida e na sociedade.
Intervir direta ou indiretamente na folia momesca
equivaleria a cassar o sentimento legítimo do povo em simular um julgamento
severo da conduta de nossas elites, sem derramamento de sangue ou violência. O
mais interessante é que a grande festa foi originalmente vista pelas elites e o estado como coisa do
populacho, da escória ou dos desclassificados sociais. Passível, inclusive, de
repressão policiai. A ideia de uma festa carnavalesca patrocinada pelos poderes
públicos, econômicos (ou a Igreja Universal) assumiria naturalmente outra
conotação social e cultural muito distinta do espírito da carnavalização da
cultura, em suas origens históricas. Que conotação é essa?
No caso de uma sociedade como a brasileira
a primeira impressão é que se trata de uma política compensatória, destinada
aos simples, ao povaréu, a arraia-miúda das grandes e pequenas cidades, sem pão, sem lar, sem trabalho e sem expectativas na política e
os políticos. O carnaval seria assim um colchão
amortecedor das imensas que
cercam a vida dos brasileiros pobres, canalizando a sua revolta para a
folia, o dispêndio bioenergético durante os três dias. Ótimo instrumento de
controle social, amparado numa pseudo liberalização dos costumes e práticas
sexuais, até pelo menos a quarta-feira de cinzas., quando sobrevém o sentimento
de culpa e castigo pelos excessos cometidos durante a farra.
Contudo, mais rico de consequência
para essa antropologia do carnaval é, sem dúvida, a sua transformação perversa
numa vantagem comparativa destina a vender, com glamour e facilidades, nossas
cidades, praias, costumes, nossas mulheres e a nossa própria identidade
cultural aos cidadãos-consumidores do mundo inteiro, através de vídeos, DVDs,
CDs e discos, pacotes turísticos oferecidos pelas agências de viagem.
Esta
mercantilização extrema do folia é grave, primeiro pela destruição do verve
crítica, debochada, sarcástica que deveria caracteriza o carnaval, sobretudo no
que respeita ás instituições dominantes: mas também porque afasta o povo, o
populacho, do palco da folia, produzindo uma espécie de apartação carnavalesca,
ao fixar áreas e zonas dintintas e intransponíveis para o folguedo das diversas
faixas sociais da população. Neste sentido, não haveria uma alegoria mais cruel
em relação aos tempos em que vivemos do que o carnaval higienizado, esterilizado,
caro e segregado, promovido pelas secretarias de turismo, como aquele que se
faz em certos pólos de animação cultural
da cidade do Recife e do estado de Pernambuco.
Esse carnaval é a máscara
mortuária do verdadeiro carnaval e antecipa, para a grande maioria da
população, a quarta-feira de Cinzas ou
uma condenação eterna, que ela tem de carregar, para outros se divertirem o ano
inteiro.
*Michel Zaidan Filho, natural de Garanhuns, é professor da Universidade Federal de Pernambuco e cientista político. Tem vários livros publicados e escreve para sites como o Brasil 247 e o blog de Roberto Almeida.
*Foto: Acervo do Bloco da Saudade.
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