Recebemos um excelente artigo (podemos considerá-lo até um ensaio, pela profundidade do texto) de autoria do professor e historiador Durval Muniz, do Rio Grande do Sul. Foi enviado ao blog pelo jornalista Homero Fonseca, que por sua vez o recebeu de um amigo médico. É um pouco longo, mas vale ser lido atenciosamente da primeira à última linha, pela lucidez e pelas lições que nos deixa relacionadas às áreas de História, Política e Direito.
Quem valoriza inteligência e cultura, vai gostar da aula desse professor sensato e atento, que em seu texto ajuda a explicar o Brasil, como bem anotou o colega Homero Fonseca.
Vamos ao artigo:
Duas
corporações se destacaram na luta pelo impeachment da presidenta Dilma Roussef
e foram decisivas para a consumação do golpe contra as instituições
democráticas brasileiras: os médicos e os profissionais do direito.
A
criação do programa Mais Médicos, pelo governo Dilma, que pretendia levar
assistência médica para as periferias das grandes cidades, para as cidades do
interior, para as comunidades rurais, indígenas e quilombolas, combatendo o déficit
de profissionais médicos no país, com a contratação de médicos estrangeiros,
com a criação de novos cursos de medicina e novas vagas de residência médica,
foi recebido com muita indignação e protestos por parte das instituições e
órgãos de representação médicos. Os carrões dos profissionais médicos se
encheram de adesivos em que lia “Fora Dilma, e leve o PT junto”.
Os
médicos cubanos foram recebidos com vaias, cascas de banana, xingamentos,
agressões racistas e xenófobas. Até o velho discurso anticomunista veio à tona
para justificar o que parecia não ter justificativa perante a mínima lógica: os
médicos estrangeiros e brasileiros contratados pelo programa não estavam
retirando o emprego de ninguém, estavam sendo enviados para áreas do país onde
os médicos não queriam ir, para atender comunidades e grupos sociais que não
era do interesse deles atender, estavam sendo remunerados nas mesmas bases
salariais que os médicos já contratados pelo Sistema Único de Saúde e tendo
acesso às mesmas condições de trabalho dos colegas, quando não enfrentavam
condições de trabalho mais precárias.
No entanto, os médicos se tornaram cabos
eleitorais de Aécio Neves, assediando, até em seus consultórios, os clientes
para que votassem na oposição. Panfletos eram distribuídos junto com receitas
médicas, clientes petistas eram hostilizados, quando não negligenciados no
atendimento. Médicos, profissionais que deveriam militar em favor da vida,
desejando explicitamente a morte daqueles que não concordavam com suas ideias
políticas. Os médicos foram presença destacada nas passeatas coxinhas: aqui em
Natal, distribuíam sanduíches para alimentar os membros da corporação integrados
à marcha. As principais lideranças da categoria vieram a público condenar o
programa e militar por sua não aprovação no Congresso Nacional e,
posteriormente, por sua extinção, colocando-se contra, até mesmo, a abertura de
novos cursos de medicina no país, notadamente em cidades do interior.
Protesto em Curitiba, quando
da criação do Mais Médicos
Os
profissionais do direito não fizeram diferente. A participação das várias
instâncias do poder Judiciário no golpe é indiscutível. Aqueles que deveriam
zelar pela observância das leis, pela defesa do Estado de direito, inclusive,
pela defesa da Constituição foram decisivos para que leis fossem violadas,
princípios básicos do direito fossem desconsiderados, que a Constituição fosse
desrespeitada. A começar do vice-presidente da República, um jurista, constitucionalista,
que, sabemos hoje, militou em todos os momentos pelo golpe e pela desobediência
à lei maior do país. Sabemos, hoje, também, que ele não se destaca pela
observância das leis.
O Supremo Tribunal Federal se omitiu durante
todo o processo, quando não militou a favor do desfecho que
conhecemos. Até hoje não julgou o pedido de anulação do impeachment impetrado
pelo advogado da presidenta legitimamente eleita. A atuação partidária e
parcial de alguns de seus membros chega a ser escandalosa. O Procurador Geral
da República se omitiu diante das inúmeras violações constitucionais
perpetradas pelo juiz Sérgio Moro, não denunciou o deputado Eduardo Cunha
enquanto esse foi importante para a realização do golpe e se mostrou parcial em
inúmeras oportunidades. A Operação Lava Jato foi fundamental para a
desestabilização do governo, trabalhando explicitamente para criminalizar o
partido majoritário no governo, atuando para encurralar as lideranças do PMDB,
obrigando-os a se afastar da aliança com o PT e tramar o golpe. As inúmeras
violações à Constituição e ao Estado de direito cometidas pelo juiz Sérgio
Moro, pelos procuradores que faziam parte da força-tarefa da Lava Jato,
acompanhadas da espetacularização pela mídia de todas as suas ações prepararam
o ambiente para o golpe. Não podemos deixar de lembrar o espetáculo promovido
pela advogada Janaína Paschoal que, ao lado do jurista reacionário de priscas
eras, Miguel Reale Jr, apresentaram o pedido de impeachment encaminhado por
Eduardo Cunha para julgamento no Congresso Nacional. A reprovação em recente
concurso na Universidade de São Paulo deixa explícito o saber jurídico da “musa
do impeachment”.
A Ordem dos Advogados do Brasil esteve na linha de frente em
apoio à ruptura da ordem democrática e constitucional através de uma farsa
parlamentar, sem nenhuma base jurídica sólida. Os cursos de direito, assim como
os de medicina, espalhados pelo país, se tornaram centros de militância a favor
do golpe, como haviam sido centros de militância em favor da eleição de Aécio Neves
que, como sabemos hoje, mas já sabíamos à época também, tem muitas contas a
ajustar com a justiça.
Temer com um dos ministros do STF
O
comportamento dessas duas corporações – deixando claro que muito juristas e
médicos não partilham dessas mesmas concepções – remetem à própria trajetória
da formação médica e jurídica no país, como também explicitam a permanência
entre nós de um elemento que foi decisivo na estruturação da sociedade
brasileira: a lógica do privilégio. Durante todo o período colonial não tivemos
a presença do ensino superior entre nós. Somente com a independência e a
instalação do regime monárquico, no país, foram criadas as primeiras
instituições de ensino superior, destinadas, justamente, a formatura de
juristas e médicos.
As
Faculdades de Medicina da Bahia e do Rio de Janeiro e as Faculdades de Direito
de Recife e São Paulo foram as primeiras instituições voltadas para formar uma
elite que iria servir ao regime monárquico e dirigir os destinos da nova nação.
Como partes de uma ordem social, política e jurídica que ainda mantinha muitos
elementos do chamado Antigo Regime, com a presença de uma pretensa
aristocracia, de uma nobreza, que se destacava do todo da população por sua
pertença a dadas genealogias de sangue e privilégios nobiliárquicos, os
formandos dessas faculdades passaram a considerar o acesso ao ensino superior
como uma marca de distinção, como um privilégio, como uma prebenda exclusiva
daqueles pertencentes aos mesmos extratos sociais que eles, um privilégio
estamental ou de classe.
Como
o ensino superior foi tardiamente introduzido no país, como as nossas primeiras
universidades só foram criadas em pleno século XX, como o ensino superior
continuou, por muito tempo, sendo de difícil acesso para a maioria de uma
população formada majoritariamente por analfabetos ou por pessoas que tinham
acesso precário às primeiras letras, consolidou-se, entre nós, a visão de que o
acesso à universidade é um privilégio de que alguns devem desfrutar.
Mesmo
com a criação das universidades federais, a partir dos anos 50, mesmo com a
reforma universitária e a expansão do ensino superior realizadas após o golpe
de 1964, a clientela universitária continuou se concentrando nas camadas médias
e altas da sociedade.
É
bastante significativo que, quando da implantação dos campi universitários por
parte dos governos militares, tenha havido resistência por parte dos
professores e alunos dos cursos de direito e medicina em se integrarem a essas
novas instalações, defendendo a manutenção de seus antigos prédios, apartados
da convivência com os alunos e professores dos demais cursos das universidades,
era a lógica da superioridade ou do privilégio atuando.
Os
alunos egressos desses dois cursos são os únicos a receberem o título de
doutor, mesmo que tenham apenas concluído a graduação, mesmo não tendo cursado
o doutorado. Na maioria das outras áreas do conhecimento, mesmo que alguém
tenha cursado o doutorado, não faz questão de ser chamado de doutor, já os
médicos e, principalmente, os juristas fazem questão de ser assim chamados.
O
doutor funciona aqui como uma espécie de título nobiliárquico, ele indica a
distinção e a diferença, não apenas de saber, mas inclusive de condição social.
Mais ainda, a par com um sentido que vem das sociedades marcadas pela lógica do
privilégio, o doutor aqui remete a pretensa existência de pessoas de uma
qualidade superior às demais e, portanto, com direito a ser tratadas de modo
diferenciado e ter direitos que os demais não podem ou não deveriam ter.
As
camadas populares brasileiras, muito marcadas pelo servilismo advindo da
escravidão, chama de doutor todo aquele que é de condição social considerada
superior ou distinta. Essa distinção, essa diferença em relação aos demais
profissionais se explicita, também, no fato de que essas duas categorias
utilizam roupas, paramentos, insígnias e, inclusive, uma linguagem que as
distingue dos demais mortais.
A
roupa branca dos médicos, que os estudantes de medicina portam com orgulho
desde o primeiro dia de aula, o paletó e gravata, obrigatórios para todos os
membros do judiciário, a toga, remetem a uma sociedade de corte, a uma
sociedade aristocrática, onde a distinção entre nobres e plebeus, inclusive, em
relação ao burguês, ao morador das cidades, deveria ser visível, a começar
pelas vestimentas e ornamentos.
A
escrita ininteligível dos médicos, o uso de uma terminologia própria, assim
como a retórica medievalizante dos operadores do direito, com o uso de
expressões em latim, com o emprego de palavras raras e imagens de pouco uso,
são fundamentais para reproduzirem essa aura de seres especiais, privilegiados,
distintos, de um saber superior e raro, em relação aos demais. A própria
autoridade do médico e do jurista, o poder quase discricionário de que gozam,
podendo, em uma fala, com uma penada, condenar alguém à morte ou à prisão, são
pouco afeitas a uma sociedade democrática, republicana e cidadã.
Como
estamos presenciando nestes dias que correm, no país, as leis podem ser
utilizadas para perseguir e cometer injustiças, o que foi uma constante na
história da justiça brasileira. Temos uma justiça que explicita bem o que é a
própria sociedade a que pertence, sendo em muitos casos misógina, racista,
homofóbica, perpetuadora de preconceitos e privilégios. Tanto o acesso a
medicina de ponta, como o acesso à justiça continua sendo um privilégio na
sociedade brasileira e, seus profissionais vêm, quase sempre, das camadas
privilegiadas da sociedade e raciocinam e agem na defesa do privilégio.
A
lógica familista, típica da sociedade
brasileira, se faz aqui presente, com os consultórios médicos passando de pai
para filho, assim como os escritórios de advocacia, as togas, os cargos
públicos. Muitos profissionais dessas áreas, pela própria formação que
receberam e sua origem social têm pouco apreço pelas camadas populares, têm
conceitos bastante desabonadores de seus clientes pobres, oferecendo para eles
o pior serviço possível. Vistos ainda como plebe ignara ou como homens sem
qualidades morais, sociais, éticas e até humanas, são tratados como gente de
segunda categoria, não como cidadãos portadores dos mesmos direitos e deveres.
Esses profissionais, formados na lógica do privilégio, só podem ser péssimos
servidores públicos, já que possuem um baixo conceito acerca do público a que
atendem, não os considerando merecedores do mesmo atendimento que dão àqueles
privilegiados socialmente como eles.
Na
sociedade contemporânea brasileira, estamos no pior dos mundos, pois essa
lógica do privilégio não moderna, veio se articular com o desenvolvimento do
capitalismo entre nós, dando a ele uma face muito particular. O ter dinheiro, o
ser rico, o ser burguês se tornou sinônimo de ser alguém com direito a dados
privilégios, inclusive, perante as leis. Ao mesmo tempo, essas categorias de
profissionais liberais, vêm perdendo status social no interior da sociedade de
mercado, vêm se proletarizando, o que gera um medo pânico em relação a perda de
seus poucos privilégios ainda existentes, muitos deles de ordem apenas simbólica.
Diante
da ameaça de proletarização, essas categorias dos extratos médios da sociedade
tendem a reagir ao processo de ascensão social dos mais pobres, ocorridos nos
últimos anos no país. O fato das políticas educacionais, implantadas nos
últimos anos, estar levando membros das camadas populares para os bancos das
faculdades de medicina e direito acendeu o sinal de alerta, chamou atenção para
esse processo de proletarização e ameaçou fortemente a prevalência da lógica do
privilégio.
A
democratização do ensino superior, a adoção de políticas republicanas visando
tornar as universidades públicas acessíveis aos mais pobres mexeu fortemente
com esse imaginário do privilégio que ainda está presente nas faculdades de
direito e de medicina. Os quase deuses têm que, agora, cair na real. A reação
corporativa de médicos e juristas a várias ações de governos eleitos pela
população, a pretensão de muitas instâncias do Judiciário de se apropriar de
cada vez maior parcela do Estado, afrontando os representantes da soberania
popular, aqueles que foram eleitos pelo povo, a defesa de privilégios
insustentáveis numa verdadeira democracia como: salários acima do teto do
funcionalismo, as várias gratificações e sinecuras que faz da justiça
brasileira uma das mais caras do mundo, explicitam a sobrevivência, entre nós,
dessa lógica do privilégio.
Agir
corporativamente, na defesa de interesses particulares, em detrimento dos
interesses da sociedade, em detrimento dos cofres públicos, inclusive no
desrespeito a lei, é um indício de que essas categorias ainda estão imbuídas de
uma lógica estamental e nobiliárquica.
Para
muitos médicos brasileiros foi um acinte verem desembarcar os médicos cubanos
no país. Eles eram, em sua maioria negros, vinham de condição social humilde,
vinham de um país considerado mais pobre e inferior ao Brasil, além de que
vinham trazer uma outra maneira de entender a prática da medicina, não
transformada, principalmente, numa mercadoria visando dar dinheiro e status
social, por isso foram vistos como comunistas perigosos. O racismo, um dos
elementos estruturantes da sociedade brasileira, o fato de que a categoria
médica, no país, é formada, em sua maioria, por gente que se considera branca,
foi responsável pela recepção hostil que os colegas cubanos tiveram entre os
médicos brasileiros, o que não aconteceu por parte da clientela, a maioria
formada por pessoas pretas e pardas, vivendo nas periferias, que os
recepcionaram muito bem.
O
racismo faz com que os negros e pardos formem a grande maioria da população
carcerária, já que a presença de negros entre os operadores do direito é uma
raridade. A forma ressentida com que o ministro Joaquim Barbosa atuou no STF,
sua ira antissistêmica, que o levou a se tornar mais um paladino do que um
juiz, julgando sem qualquer equilíbrio, só não foi maior do que a hostilidade
que alguns colegas a ele devotavam, como a famosa diatribe com o ministro
Gilmar Mendes explicitou.
Todos
nós já escutamos, algum dia, a frase que dá título a esse artigo: Com quem você
pensa que está falando? Ela é a materialização na linguagem da lógica do
privilégio, da ideia de que existe alguns melhores que outros, alguns que têm
mais direitos que outro e menos obrigação que os demais. Quando você é
interpelado por essa frase é para que você se coloque em seu lugar de
subalterno, para que você reconheça que está diante de alguém diferente dos
demais, superior aos demais, que deve ser tratado com deferência e diferença.
Ela
aponta para o fato de que você cometeu um equívoco ao considerá-la uma pessoa
como outra qualquer, uma pessoa com os mesmos deveres das demais. Essa frase
normalmente é dita quando, numa dada situação, se cobra que alguém cumpra as
leis, cumpra as obrigações, aja como deveria agir qualquer um. O problema é que
essa pessoa não se considera uma pessoa comum, com os mesmos direitos e deveres
que os demais. Portanto, uma sociedade fundada na lógica do privilégio terá uma
enorme dificuldade em construir instituições democráticas e republicanas, terá
uma enorme dificuldade de compreender, inclusive, o verdadeiro sentido da
vivência da cidadania.
Ser
cidadão é justamente gozar de direitos e possuir deveres comuns a todos os
demais. A cidadania foi entendida desde a emergência dos regimes políticos
fundados na soberania popular como sendo universal, estendida a todos os
membros da população da nação. Não pode haver cidadania efetiva quando alguns
se julgam melhores do que outros, quando uns defendem seus interesses
corporativos em detrimento dos direitos do restante da população, não existe
cidadania quando se aparelha as instituições e o Estado para o atendimento de
demandas corporativas e individuais. A cidadania é condição de acesso, a todos,
à fala pública, quando todos podem falar e quando se pode falar com todos sem
que se tenha que perguntar com quem se está falando.
Estou chegando a conclusão que, MICHEL TEMER, foi o melhor presidente que o PT já elegeu(com 54 milhões de votos, por duas vezes). E pasmem, não é à toa que, a inflação de 2017 foi a menor nos últimos 19 anos. Parabéns PT, por Temer ter sido vice da Petralha escrota Dilma...
ResponderExcluirP.S.:- - A social democracia do PSDB é a gonorreia da política ocidental, só não é pior do que o petralhismo ‘’VÊRMEIO-INCARNADO’’, em razão da putada ser uma espécie de AIDS da extrema-esquerda escrota, golpista e ladrona...
Resumindo o logo e cansativo , que se fosse um filme eu nomearia (Os devaneios de um Petista em decadência)
ResponderExcluir