Clarice Lispector é uma escritora única no Brasil. O estilo intimista, filosófico, musical, surpreende e atrai leitores nacionais e da maioria dos países do mundo ocidental. Quando lançou seu primeiro romance, “Perto do Coração Selvagem”, críticos viram influência de dois grandes nomes da literatura mundial: Virgínia Wolf e James Joyce. Acontece que a ucraniana-brasileira nunca os havia lido.
Esse personagem singular na história das letras nacionais nasceu na Ucrânia, em 1920. Tinha apenas dois anos quando seus pais – Pinkouss e Mania Lispector – vieram morar no Brasil. Se instalaram inicialmente em Maceió e em 1925 mudaram para Recife.
Na capital pernambucana, Clarice morou numa casa da Rua da Imperatriz e estudou em dois colégios localizados no centro da cidade: O João Barbalho e o Ginásio Pernambucano. Certamente muitos estudantes dessas escolas freqüentam as salas de aula sem saber que por lá passou um dia uma das maiores escritoras do mundo.
Ainda em Pernambuco, a menina Clarice tentou publicar alguns textos no velho Diario da Praça da Independência. Seus contos foram recusados, pois eram histórias sem enredo.
Em 1934 o pai, que no Brasil adotou o nome de Pedro, muda para o Rio de Janeiro. Sua mãe, Marieta (Mania na Ucrânia) já havia morrido.
Na então capital do país Clarice Lispector começa a escrever para jornais e revistas e tem o conto O Triunfo publicado no semanário “Pam”. A garota continua seus estudos, iniciados em Pernambuco e ingressa na Faculdade de Direito. Demoraria, mas conseguiria concluir o curso.
Exercendo a carreira de jornalista, a escritora faria grandes amizades no mundo literário. O casal Érico Veríssimo e Mafalda ficaria muito próximo de Clarice. Esta também manteria uma relação muito boa com Fernando Sabino, autor do elogiado romance O Encontro Marcado. Os dois manteriam durante anos uma correspondência que no futuro seria transformada em livro.
No Rio de Janeiro ela também se tornou amiga de escritores como Vinícius de Moraes, Otávio de Faria, Raquel de Queiroz e Lúcio Cardoso. Este último é um dos poucos, no país, que tem um estilo de escrever assemelhado ao de Clarice Lispector. Há quem aponte influências de Lúcio na autora de Perto do Coração Selvagem.
Clarice casou com um colega do curso de Direito, Maury Gurgel Valente, com quem teve dois filhos: Pedro e Paulo.
Maury se tornou diplomata e por conta da profissão morou em diferentes lugares. Assim, após o casamento a escritora residiu em Belém do Pará, Nápoles, Paris, Londres, Torquay e cidades americanas.
Quando se separou do marido, em 1959, retornou definitivamente ao Brasil. Fez então uma visita para matar as saudades do Recife, onde reviu parentes. Posteriormente escreveria um livro relembrando a sua infância em Pernambuco.
As resistências iniciais ao texto intimista – para alguns herméticos -, aos romances sem enredo, à prosa única de Clarice Lispector foram quebradas com o lançamento de livros de contos e obras como “A Aprendizagem – O Livro dos Prazeres”, “Maçã no Escuro”, “A Paixão Segundo G.H.”, “O Lustre”, “Água Viva” e “A Hora da Estrela”, este último adaptado para o cinema.
Alberto Dines, um dos maiores jornalistas brasileiros, que dirigiu o Jornal do Brasil (RJ) em sua fase áurea, definiria da seguinte maneira o romance “Água Viva”, em carta enviada à autora: “É menos um livro-carta e, muito mais, um livro música. Acho que você escreveu uma sinfonia”.
Lispector causaria impacto até com suas história curtas. Num conto da década de 70 criou um personagem, uma velhinha, completamente apaixonada por Roberto Carlos, então considerado “o rei da música brasileira”. Outro texto marcante é “O Ovo e a Galinha”, belo, criativo, filosófico, capaz de deixar o leitor embevecido, obrigá-lo a fazer releituras e se apaixonar pela reflexão profunda nascida do talento da escritora.
Clarice é considerada pela crítica como pós-modernista. Na verdade ela não se enquadra muito em nenhuma escola literária. Uma vez lhe perguntaram por que escrevia e a resposta foi outra pergunta: por que você bebe água? “Porque tenho sede, para não morrer”, disse o jornalista. “É isso. Eu escrevo para não morrer”, esclareceu a escritora.
Abaixo três parágrafos do conto “O Ovo e a Galinha” para você ter uma ideia do estilo Clarice Lispector:
O ovo é uma coisa suspensa. Nunca pousou. Quando pousa, não foi ele quem pousou. Foi uma coisa que ficou embaixo do ovo. – Olho o ovo na cozinha com atenção superficial para não quebrá-lo. Tomo o maior cuidado de não entendê-lo. Sendo impossível entendê-lo, sei que se eu o entender é porque estou errando. Entender é a prova do erro. Entendê-lo não é o modo de vê-lo. – Jamais pensar no ovo é um modo de tê-lo visto. – Será que sei do ovo? É quase certo que sei. Assim: existo, logo sei. – O que eu não sei do ovo é o que realmente importa. O que eu não sei do ovo me dá o ovo propriamente dito. – A Lua é habitada por ovos.
O ovo é uma exteriorização. Ter uma casca é dar-se.- O ovo desnuda a cozinha. Faz da mesa um plano inclinado. O ovo expõe. – Quem se aprofunda num ovo, quem vê mais do que a superfície do ovo, está querendo outra coisa: está com fome.
O ovo é a alma da galinha. A galinha desajeitada. O ovo certo. A galinha assustada. O ovo certo. Como um projétil parado. Pois ovo é ovo no espaço. Ovo sobre azul. – Eu te amo, ovo. Eu te amo como uma coisa nem sequer sabe que ama outra coisa. – Não toco nele. A aura de meus dedos é que vê o ovo. Não toco nele – Mas dedicar-me à visão do ovo seria morrer para a vida mundana, e eu preciso da gema e da clara. – O ovo me vê. O ovo me idealiza? O ovo me medita? Não, o ovo apenas me vê. É isento da compreensão que fere. – O ovo nunca lutou. Ele é um dom. – O ovo é invisível a olho nu. De ovo a ovo chega-se a Deus, que é invisível a olho nu. – O ovo terá sido talvez um triângulo que tanto rolou no espaço que foi se ovalando. – O ovo é basicamente um jarro? Terá sido o primeiro jarro moldado pelos etruscos ? Não. O ovo é originário da Macedônia. Lá foi calculado, fruto da mais penosa espontaneidade. Nas areias da Macedônia um homem com uma vara na mão desenhou-o. E depois apagou-o com o pé nu.
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