Por Michel Zaidan Filho*
Mais uma vez, encenou-se a peça da chamada "Insurreição
Pernambucana", com a data apelativa ao "sentimento de nativismo e de
pertencimento nacional" do povo pernambucano. Bem que poderia ser um
motivo carnavalesco, como gostam nossas elites dirigentes de fazer com eventos
e personalidades consideradas importantes para a nossa história. Nunca será
demais lembrar que que a narrativa histórica sempre foi usada pelos cronistas e
historiadores oficiais como meio privilegiado de construção de "mitos
fundadores" que estão na origem da identidade dos povos. Seja o povo
grego, romano, alemão, inglês, ou mesmo o povo brasileiro. A história das
nações se perde na noite dos tempos, entremeada de lendas, mitos e criações.
Nós também temos os nossos. Desde os tupis-guaranis e narrativa sobre "a
terra do sem males" até o paraíso gilbertiano da miscigenação racial da
nossa gente, o fato é que sem uma espécie de "mito fundador", não
somos ninguém, não tempos personalidade ou identidade própria.
A Nação -
Pernambuco não seria diferente. O Brasil começou aqui, dizem as placas
informativas no caminho de Jaboatão dos Guararapes (a outrora
"moscouzinho"). Ou no marco-zero, como quer a Prefeitura do Recife.
Ou, quem sabe, em Olinda, com a "guerra dos mascates". É mais bem
provável que tenha se iniciado em Apipucos,na casa do sociólogo do lugar, como
diz João Cabral de Melo Neto. Sim. porque a construção (mítica) da identidade
de um povo passa necessariamente pela engenharia simbólico-cultural de algum
intelectual orgânico, ligado às classes dominantes. Neste caso, descontando a
saga narrativa dos cronistas oficiais da história do Brasil, Gilberto de
Melo Freyre pode ser considerado o intelectual orgânico das nossas classes
senhoriais, pelo menos até 1930. E a sua tão polêmica tese da
"miscigenação racial" veio responder aos estereótipos conhecidos de
"povo sem nenhum caráter", "macunaímico", ou
"picaresco".
A atual
repaginação dessa ideologia do caráter da cultural brasileira, entre nós, tem
um sabor de uma cocada preta, ou um pedaço de bolo de Souza Leão, para dizer um
mínimo. Não é só falsa, edulcorante ou edificadora como costuma ser essas
operações da memória, é acima de tudo provinciana, bairrista e atrasada. As
pesquisas históricas mais recentes dão conta de que a patriotada a que
chamam de "insurreição pernambucana" contra "o invasor
holandês" se deve a um endividamento crônico dos senhores de engenho junto
ao governo holandês. A ideia de se insurgir contra os Flamengos tem a ver a
inadimplência desses senhores e o calote que eles terminaram por dar. A saída
dos holandeses de Pernambuco levou Mauricio de Nassau e sua corte para os
EE.UUs., onde criaram a Nova Amsterdã, na Ilha de Manhattan, depois a cidade de
Nova Iorque. Também ensinou aos holandeses a indústria do açúcar, fazendo-os
com que prescindisse da colônia portuguesa, que terminou passando para o
domínio da Coroa espanhola por vários anos.
Assim, é muito fácil transformar a necessidade em virtude. Fazer de senhores inadimplentes grandes heróis da nacionalidade. E ainda com o toque do congraçamento das raças dominadas e dominadoras. Nestes tempos sombrios de reescritura política da história (quando os golpes militares querem ser lidos como processos democráticos revolucionários e onde as vítimas vão se tornando réus), é preciso ter muito cuidado com os ardis da construção ideológica ou mítica da memória. Basta o carnaval, para a produção das alegorias inocentes.
Assim, é muito fácil transformar a necessidade em virtude. Fazer de senhores inadimplentes grandes heróis da nacionalidade. E ainda com o toque do congraçamento das raças dominadas e dominadoras. Nestes tempos sombrios de reescritura política da história (quando os golpes militares querem ser lidos como processos democráticos revolucionários e onde as vítimas vão se tornando réus), é preciso ter muito cuidado com os ardis da construção ideológica ou mítica da memória. Basta o carnaval, para a produção das alegorias inocentes.
*Michel Zaidan Filho é cientista político e professor da UFPE.
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