Já
publicamos um artigo, assinado por Margaret
Atwood e
depois da série, mais recente, tornou-se best seller em vários países do mundo,
inclusive o Brasil.
Tornou-se ainda mais popular depois de uma observação do professor
Fernando Haddad, que foi candidato à presidência da República, assinalando que “O
Conto de Aia” é uma das distopias que mais dialoga com as bozoaflições contemporâneas.
Eduardo Oliveira, amigo e leitor do blog, me enviou hoje uma outra
matéria sobre a série, publicada no Diário do Centro do Mundo. O texto é
assinado por Nathalí Macedo.
Merece ser lido com atenção:
Imagine
uma série carregada até os dentes de ideologia feminista sem nenhum
determinismo e nenhuma demagogia, em pleno Século XXI, quando todos – ou quase
todos – são deterministas e/ou demagogos.
Inimaginável?
Pois existe.
“The
Handmaid’s Tale” está ambientada em um universo distópico que,
curiosamente, mas não por acaso, está muito próximo do nosso próprio universo.
June,
a protagonista, é uma mulher independente, casada e mãe de uma filha. Ela vive
normalmente no mundo ideal da igualdade de gênero – esse mesmo que nós,
enganadas, acreditamos vivenciar -, até que, após um surto de infertilidade,
instaura-se uma ditadura patriarcal no mundo e ela perde sua família, seu
emprego, sua independência, sua vida e sua indentidade: em vez de June, passa a
chamar-se Offred, que quer dizer “Serva de Fred”, o homem que, a partir de
então, passa a ser o seu dono.
Sim,
isso causa náuseas.
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O
universo da série é construído a partir de castas: as “Aias” são as mulheres
férteis (June é uma Aia), – aquelas que já tinham seus filhos antes da
instauração da ditadura (os filhos lhes são arrancados à força), –
responsáveis por engravidarem de seus “donos” e salvarem a humanidade da extinção
– nós, sempre, mães do universo! -, as “Marthas”, que, não podendo mais
reproduzirem, cuidam dos serviços domésticos, as “esposas”, aquelas cheias de
privilégios sociais que se empenham em auxiliarem seus maridos no ofício de
oprimirem as mulheres menos privilegiadas e não se dão conta de que, a despeito
dos privilégios, também são oprimidas, e, finalmente, mas não menos importante,
as “Tias”, mulheres responsáveis a ensinarem – às vezes na base da doutrinação,
às vezes do castigo físico – às Aias que perpetuar a humanidade é o seu dever e
que elas devem se sacrificar porque Deus quis assim.
Se
você é uma mulher e essa divisão de castas não tem nenhuma semelhança simbólica
com a realidade, desculpe, mas você tem problemas cognitivos.
“Vocês
devem se sacrificar porque Deus quis assim” é, alias, o que diz a bancada
evangélica brasileira do Século XXI, embora eu não queira acreditar que o
universo horrendo de “The Handmaid’s Tale” esteja tão perto de mim.
Acontece
que, queiramos ou não, há várias tias e várias esposas e, principalmente,
vários potenciais donos à espera de servas, com a bênção de Deus.
O
sacrifício que “Deus” – o patriarcado, lamentavelmente, É Deus – consiste
em submeter-se a um ritual de fertilização – estupro, o nome – em que a esposa
segura nas mãos da Aia, que é penetrada pelo seu dono. Para a procriação.
Porque deus quis assim. Inclusive, o estuprador ora antes e depois do ato.
Fofo.
A
série foge do clichê mulheres-rainha-homens-nadinha. Esposas oprimem aias. Tias
oprimem aias. Aias oprimem umas às outras. Aias se apaixonam por seus algozes.
O mundo, sabem os roteiristas, não é linear.
Pode
ser vista no canal da Paramount (além do torrent piratão).
Mas
por que, afinal, uma série tão adstringente tem sido aplaudida por nove entre
dez feministas e pessoas interessadas nas questões de gênero?
Porque
sua adstringência é um mal necessário. Suas personagens femininas são bem
construídas, seus conflitos são bem colocados e questões importantes – maternidade,
abuso, sororidade – são postas com cuidado, poesia, honestidade e uma dose de
sadismo (inclusive, há gatilhos gravíssimos para mulheres que já sofreram abuso
sexual. Para estas, não recomendo).
A
série vale a pena pelos simbolismos sutis, por explorar a estreita relação
entre religião, maternidade e opressão de gênero e, se nada disso for
suficiente, vale só pela beleza – cada cena é um quadro perfeito.
Quando terminarmos de assistir a série por inteiro,
publicaremos um artigo de nossa própria autoria sobre o “Conto de Aia”, que
consideramos o melhor programa (série) já produzida para televisão e uma
verdadeira “aula” sobre a natureza do fascismo.
A série, a nosso ver, superou o livro, o que é raro
numa adaptação.
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