Por Michel Zaidan Filho*
As
convicções democráticas do povo brasileiro enfrentaram uma dura prova, no último domingo de eleições presidenciais. Para qualquer observador externo, que não
conhece o país, o Brasil pode parecer uma nação teocrática dirigida por
pastores fundamentalistas e militares golpistas, sem nenhum apreço à laicidade
do Estado brasileiro e à Constituição. A imagem do ex-capitão do Exército
rezando, de mãos dadas com os seus apoiadores e familiares, é uma frase
eloquente da possível fisionomia do futuro governo da República brasileira.
Já
estivemos melhor na fita. A grande luta travada, durante o processo de
restabelecimento da democracia e a própria constituinte de 1988, que ora está
sendo ameaçada pelo futuro governante, nos conduziu a um sentimento de
democracia, a uma fé nas instituições democráticas e a um basta
(Brasilnuncamais) ao regime ditatorial e desrespeitador dos direitos humanos.
Infelizmente,
a experiência tortuosa da transição democrática, Sarney à frente, da
hiperinflação e do eterno déficit de representação das camadas mais simples da
população nos conduziram à experiência traumática do populismo eletrônico,
apoiado pela GLOBO, à eleição de Fernando Collor de Mello.
Mais
grave ainda, foram os oito anos do governo de Fernando Henrique Cardoso, dando
continuidade à agenda "moderna": privatização, abertura da economia
brasileira e desregulamentação do mercado financeiro e do mercado de trabalho.
O saldo danoso desse governo não foi só a imensa crise cambial de 2002,
obrigando o presidente eleito a escrever uma carta "aos brasileiros"
se comprometendo a cumprir os contratos do governo anterior, foi acima de tudo
um voto de desconfiança na eficácia das instituições democráticas em combater a
desigualdade social e melhorar a vida do povo.
Naturalmente,
essa desconfiança não foi só no Brasil. Toda a América Latina sacudida pelos
planos de estabilização, inspirada pelo chamado "Consenso de
Washington", passou por isso. E, entre nós, manifestou-se como uma forma
de ressentimento contra o regime democrático. Podemos dizer, hoje, que as
nossas elites bem-pensantes (incluindo parcela da intelectualidade, do
políticos liberais e social-centristas) demonstraram como o consenso em torno
da democracia era e é muito frágil.
É
sempre possível ter à mão um ex-capitão, agora ajudado pela igreja
neopentecostal, a quem recorrer contra o fantasma do "comunismo"
amoral e irreligioso. Já a classe média urbana, escolarizada e incluída
economicamente, representa o papel de sempre nas recorrentes crises da
democracia brasileira: massa de manobra, enrolada no pavilhão nacional, de
interesses econômicos inconfessáveis, iguais aqueles que financiaram
escusamente a campanha difamatória contra o candidato do PT, através das redes
sociais, nas barbas da Justiça Eleitoral, que nada fez.
Elegeu-se
um personagem que representa (bem) o seu papel de verbalizar os anseios e
receios dessa classe média amedrontada e ressentida e os interesses das
empresas estrangeiras, dos ruralistas, da bancada da bala e da bancada da
Bíblia, entre outros. A reviravolta da agenda política brasileira deverá levar
a cabo a desconstrução iniciada com o golpe parlamentar de 2016, com esse
fantoche intitulado "Michel Temer".
A
política externa do país deve abandonar o multilateralismo e a relação Sul-Sul,
enfraquecendo os processos de integração regional, em benefício de uma política
de relações bilaterais com os EUA, voltaremos a ser o quintal da política
externa norte-americana. Devemos romper relações diplomáticas com os países que
mantém uma relação crítica e autônoma em relação aos interesses
norte-americanos. Teremos uma relação tensa com a União Europeia, que
desaprovou a eleição do ex-capitão, denominada de um retrocesso na América
Latina.
O
processo criminoso de lesa-pátria dos valiosos ativos nacionais (petróleo, água
doce, reservas indígenas etc.) deve entregar às empresas estrangeiras, na bacia
das almas, as riquezas brasileiras, patrimônio do povo de nosso país. A
grilagem a expropriação do latifúndio agroexportador sobre as terras dos
camponeses e trabalhores rurais será outra grave consequência dessa política
antissocial. Com o fim do Ministério do Meio Ambiente, a entropia vai tomar
conta de nosso patrimônio ambiental, destruindo matas e florestas e ajudando a
poluir ainda mais nossa atmosfera.
Gravíssimas
serão as repercussões dessa política no que diz respeito as garantias e
direitos constitucionais, sob a influência perniciosa dos pentecostais sobre o
governo: o policiamento ideológico do ensino, da pesquisa e da extensão, com o
estímulo à delação de alunos em relação às preleções de seus mestres. O
banimento do ensino público das conquistas modernas da ciência, dos movimentos
sociais e da consciência social do pais. No direito penal, volta a doutrina
(neo)lombrosiana, agora atualizada nos grupos sociais: pretos, prostitutas,
lesbicas, índios, comunistas etc. É o triunfo do terrorismo penal simbolizada
pela ameaça da antecipação da maioridade penal. Teremos menos escolas e o
aumento do encarceramento infanto-juvenil.
No
entanto, as coisas podem se complicar na frente parlamentar e congressual. Aí,
o ex-capitão, que pretende nomear vários integrantes do atual governo para os
ministérios, vai enfrentar os problemas crônicos da chamada governabilidade
presidencial brasileira. Nada mudou. Continua uma imensa fragmentação da
representação parlamentar, sobretudo no Senado, onde este governo não obteve
maioria. Na Câmara dos deputados, o PT teve a maior bancada (56 deputados), sem
contar com os aliados. A maioria governista é frágil e inconsistente. Não há
como aprovar emendas constitucionais.
O
futuro governante não tem perfil conciliatório ou negocial. Promete governar
por decretos, confiado nos votos que recebeu e no apoio dos evangélicos
neopentecostais e sua emissora. A tentação golpista e autoritária combina bem
com seu perfil. Mas pode custar caro ao seu mandato e a todos nós. Não será o
primeiro e nem o último a tentar esse recurso, apelando diretamente para o
"povo" que o elegeu. O fantasma de uma intervenção estará a nos
rondar, diante aliás da fragilidade do Poder Judiciário e a partidarização da
polícia.
*Michel Zaidan Filho é
cientista político e professor da UFPE. Foto: Revista Cult
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