“O povo assistiu aquilo bestializado,
atônito, surpreso, sem conhecer o que significava. Muitos criam sinceramente que estavam vendo uma parada”. (Aristides
Lobo).
O depoimento singelo,
prestado ainda no calor na primeira hora republicana, sintetiza aspectos
iniciais da experiência republicana no Brasil ao longo dos seus mais de 100
anos de existência entre nós. Senão, vejamos. Um primeiro aspecto dessa
experiência é a dominação republicana. Que tipo de Estado e a serviço de que
interesses de que interesses foi construído o regime republicano no Brasil?
Para responder a esta
pergunta, recorremos a uma poderosa imagem da ficção literária brasileira:
certa passagem do romance Vidas Secas, de Graciliano Ramos.
Fabiano
ia desprecatado, observando esses sinais e outros que se cruzavam, de viventes
menores. Corcunda, parecia farejar o solo — e a caatinga deserta animava-se, os
bichos que ali tinham passado voltava, apareciam-lhe diante dos olhos miúdos.
Seguiu
a direção que a égua havia tomado. Andara certa de cem braças, quando o
cabresto de cabelo que trazia no ombro se enganchou num pé de quipá.
Desembaraçou o cabresto, puxou o facão, pôs-se a cortar as quipás e as palmatórias que palmatorias interrompiam a passagem.
Tinha
feito estrago feio; a terra se cobria de palmas espinhosas. Deteve-se [...] e
deu de cara com o soldado amarelo
que, amarelo que um ano antes, o levara
à cadeia, onde ele aguentara uma surra e passara a noite. Baixou a arma. Aquilo
durou Aquilo durou um segundo. Menos:
durou uma fração de segundos. Se houvesse durado mais tempo, o amarelo teria
caído, teria caído, esperneando na
poeira, com o quengo rachado. Como o impulso que moveu o braço de Fabiano foi
muito forte, o muito forte, o gesto que ele fez teria sido bastante para
um homicídio, se outro impulso não lhe dirigisse o braço no sentido contrário. A lâmina parou de
chofre, junto à cabeça do intruso, bem em cima do boné vermelho. A princípio o vaqueiro não compreendeu nada.
Viu apenas que estava ali um inimigo. De
repente notou que aquilo era um homem e, coisa mais grave, uma autoridade.
Sentiu um choque violento, deteve-se, o braço ficou irresoluto, bambo,
inclinando-se para um lado e para outro.
[...]
Afastou-se, inquieto. Vendo-o acanalhado e ordeiro, o soldado criou coragem,
avançou, pisou firme, perguntou o
caminho. E Fabiano tirou o chapéu de couro.
—
Governo é governo.
Tirou
o chapéu de couro, curvou-se e ensinou o caminho ao soldado amarelo.
“Governo
é governo”.
Quem seria o “soldado
amarelo”, que apesar de frágil e covarde obriga Fabiano a recuar?
Um dos traços mais marcantes
da formação do Estado no Brasil é certamente essa hipertrofia, a aparente autonomia
que a máquina e seus aparelhos estatais parecem ter adquirido em nosso país. Mas
por que a face impenetrável desse “Leviatã” de mil braços e mil olhos aparenta
ser tão amedrontadora à maioria dos brasileiros, fazendo-os se sentirem cidadãos de segunda categoria ou
meio cidadãos?
Essa característica atávica tem
a ver com a forma, o meio, o caminho através do qual se constituiu o
regime republicano entre nós. Ao contrário do ocorrido em outros países — e
o principal exemplo na América Latina é, sem dúvida, o caso do Haiti —, a
proclamação da República não se deu concomitantemente com a redistribuição da
propriedade agrária, por meio de uma
reforma radical (o famoso modelo jacobino, de que nos fala o filósofo italiano Antonio Gramsci).
E a abolição da escravatura,
ela mesma, não foi obra exclusiva dos escravos ou dos grupos abolicionistas.
Tivemos com o advento da República, uma mudança de regime sem a devida incorporação
à plena cidadania política e social e social da maior parte da população
brasileira. Ou seja, ganhamos uma república de pés oligárquicos e cabeça
liberal com um enorme contingente de parias e marginais, ou seja, pessoas
deserdadas da fortuna e da sorte.
Esses aspectos
antidemocráticos e antipopulares levaram muitos estudiosos da vida política
brasileira a definirem o regime
republicano entre nós como “prussiana”, isto é, de cima para baixo, mediante
uma conciliação entre as entre as elites velhas e novas, deixando intocadas as
relações de produção no campo e excluindo da vida política a política da Nação a maioria do povo
brasileiro. Daí o caráter fechado, burocrático, onipotente do Estado no Brasil.
Outro traço correlato à
hipertrofia do Estado é a recorrente criminalização da chamada questão social e
dos movimentos sociais. Na melhor das hipóteses, podemos afirmar que o
tratamento dispensado aos de baixo neste
país foram as políticas de cooptação. Isto é, quando não se tenta
cooptar (mesmo nos governos mais ou
menos democráticos e populares) os movimentos sociais, a regra é a mais
pura e simples repressão policial.
Num quadro de precária
institucionalidade democrática, a afirmação das mais elementares liberdades
civis por parte dos setores subalternos tem sido interpretada como uma ameaça
direta à sobrevivência da ordem social.
Aliás, é preciso acrescentar
a este ranço antissocial do Estado republicano no Brasil a extrema fragilidade
do quadro político-partidário e a
inexistência de liberdade e autonomia sindicais. Na ausência assim de tais
mecanismos de absorção e canalização das demandas sociais, qualquer
manifestação de protesto ou insatisfação dos de baixo põe em risco a precária
instabilidade das instituições políticas. De tão frágeis e instáveis, já houve quem dissesse mais de uma vez que no Brasil não existem
propriamente partidos, mas guarda-chuvas, ônibus, frentes, etc.
Mas é necessário convir que,
a despeito dessas limitações, a República inaugurou a época da explicitação
dos conflitos sociais. As classes
sociais não só se gestaram — elas próprias — no bojo da modernização capitalista
(e depois e, depois, monopolista) ocorrida durante o regime republicano, como
se auto reconheceram, num processo de
construção de suas identidades ideológicas. O período republicano viu
florescer as grandes ideologias modernas (o socialismo, o anarquismo, o
comunismo, o catolicismo social, o trabalhismo, etc.), e, a partir delas, os
grandes embates entre as entre as diferentes classes sociais. O socialismo,
o anarquismo, o comunismo, o trabalhismo, o catolicismo social são frutos da
idade republicana no Brasil e permitiram, mal ou bem, a plena explicitação das
contradições sociais. A República foi e tem sido o regime das lutas sociais por
excelência.
A evolução da experiência
republicana entre nós não modificou propriamente este quadro, mas exacerbou
em grande medida suas principais
características. A chamada “Revolução de 1930” elevou a uma potência infinita a
hipertrofia do Estado, num processo de corporativização geral da sociedade
brasileira. Absorveu, cooptando, os “intelectuais orgânicos dos movimentos
sociais. Se não descriminou a questão social deu-lhe um tratamento burocrático,
ascético, técnico-científico. E certamente acelerou muito o desenvolvimento do
capitalismo no Brasil.
São dessa fase, aliás, dois
fenômenos correlatos: a incorporação — pelo alto — de grandes massas ao
sindicalismo burocrático do Estado; e a subordinação do pensamento social
revolucionário à torrente avassaladora do nacionalismo. Com a Revolução de
1930, ser moderno, ser progressista, revolucionário era combater o latifúndio
improdutivo no campo e a e dominação
imperialista na cidade, tudo em favor da panaceia da industrialização
brasileira, do capitalismo nacional, “autônomo”.
O golpe militar de 1964
desfez — pela crítica das armas — muitas dessas ilusões. Mas, a despeito ou por
causa mesmo da precária base política, o regime militar levou à frente um
processo de modernização monopolista da economia sem igual na história do país.
O Brasil dos anos 1980 não era mais um país terceiro-mundista, como nos
anos 1960. Éramos sessenta. Éramos,
então, um país monopolista, com uma economia dominada pelo capital financeiro e
uma estrutura social altamente diferenciada.
No entanto, apesar do enorme
desenvolvimento capitalista, era necessário admitir que a estrutura social do
Brasil republicano era uma mistura de Índia com Bélgica. Se tínhamos, de um
lado, um setor altamente informatizado
com operários de alta qualificação profissional, de outro tínhamos uma
extensa horda de “catadores de lixo”, que
de lixo” que alimentavam uma
florescente indústria de adubos e papéis. Isto sem falar na crônica
instabilidade e artificialidade do
quadro político-partidário, num monstruoso aparelho estatal e na recorrente
criminalização dos movimentos sociais.
A “Nova República”, ao invés
de redimir este quadro, só o agravou, frustrando a expectativa de mudança
social e política do país. A precária aliança entre os liberais históricos e
uma grande parte da esquerda, sob a direção dos primeiros, que se pôs fim ao
regime militar, foi incapaz de ultrapassar as primeiras eleições de 1985. A
desestruturação e a instabilidade
partidária só avançaram, de eleição a eleição, com o descrédito da população
nos políticos. E o que foi mais sério: a
evaporação do centro político (representado pelos dois maiores partidos do
sistema político do país) que deram sustentação à transição democrática.
A despeito da relativa
institucionalização das liberdades democráticas, com o fim do processo
constituinte, o enorme passivo social — representado pelos extensos setores
sociais não representados politicamente e destituídos de qualquer tipo de
cidadania — clamava por sua resolução, enquanto uma sofisticada indústria
cultural buscava busca manipular
esses setores para viabilizar projetos messiânicos e moralistas de salvação
nacional. Nunca foram tão evidentes a fraqueza e a imensa crise do sistema
partidário brasileiro. O populismo eletrônico — agora redivivo na figura do
na figura do ex-presidente Fernando Collor de Melo — só tinha esta única
e profunda significação.
A controversa eleição do
presidente Fernando Collor de Melo, fruto da primeira campanha política
profissionalizada do Brasil, representou um divisor de águas na agenda política
do país. Com Collor de Melo, o Brasil assistiu, sobressaltado, à execução de um programa
liberal na economia e fascista na política. Eleito por uma coligação fantasmagórica
de partidos, o jovem presidente alagoano decidiu implantar a sua agenda de privatizações
e abertura econômica a golpe de medidas provisórias e ataques sistemáticos aos
direitos e às organizações sindicais de trabalhadores — além dores e de querer
afrontar o Congresso com suas medidas, sem nenhuma proposta de negociação. Foi
deposto.
Apesar do impedimento do
ex-presidente, sua agenda veio para ficar e foi plenamente executada pelo
presidente Fernando Henrique Cardoso, que inaugurou a chamada “reforma do
Estado”, sob pretexto de imprimir mais
eficácia as políticas públicas e aumentar a poupança, através de investimentos
externos, para financiamento da atividade econômica do país. Paradoxalmente, quanto mais se fez a
redução do papel do Estado na economia, mais se exortou a participação social e
o voluntariado. O próprio conceito de “sociedade civil”, de extração hegel-marxista foi usado para a refilantropização da
solidariedade e a transferência de responsabilidades sociais para a família, a comunidade e o mercado. Foi a época de ouro
do “terceiro setor”, do “mercado altruísta” ou da chamada “res- mada “responsabilidade social das empresas”. Houve uma audaciosa
alienação do patrimônio público, aliada ao chamamento à participação social.
A sucessão de Fernando
Henrique Cardoso deu origem a uma longa controvérsia: a vitória do
ex-metalúrgico Luiz Inácio (LULA) das
Silva suscitou o debate sobre a ruptura
ou uma continuidade em relação à agenda trazida por Fernando Collor de Melo e aprofundada pelo seu sucessor? Na pior
das hipóteses, Lula teria acrescentado uma agenda social à agenda econômica de Fernando
Henrique Cardoso. O fato é que a chamada sociedade civil brasileira foi
assaltada por uma imensa crise de identidade, sobretudo com a cooptação de
antigas lideranças sindicais, comunitárias e estudantis pelo governo petista,
enquanto a sociedade via estarrecida a sucessão de escândalos no Congresso nacional.
Neste ponto, é preciso convir
que Lula assistencializou os direitos e neutralizou os efeitos disfuncionais do
Poder Legislativo sobre seu governo. A idílica sociedade civil brasileira vem a
muito custo procurando se rearticular, fora do
lar fora do espaço da cooptação
e do governismo, mas encontra dificuldades por causa do grau de apoio que o governo desfruta seja entre as elites
econômicas do país, seja entre os excluídos sociais, que, graças à ampliação
significativa da Bolsa Família, vêm cruzando a linha que separa a miséria da
pobreza.
PS. O presente texto foi
escrito a pedido da fundação Joaquim Nabuco para acompanhar uma exposição sobre as políticas sociais. Faltou
naturalmente incluir a trajetória do governo petista, que ficará para depois.
*Michel Zaidan Filho é cientista político, professor da Universidade Federal de Pernambuco.
**Imagem: Filme "Vidas Secas", baseado no romance de Graciliano Ramos.
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