Jones Manoel*
Nos últimos anos da política
brasileira, a Polícia Federal (PF) está no centro dos holofotes. Protagonista
de grandes operações policiais de ampla cobertura midiática e ator político
central desde o golpe jurídico-parlamentar que destituiu a presidenta Dilma, as
ações da PF ganham novos ares de controvérsia com sua ofensiva contra as
universidades públicas. Primeiro, na Universidade Federal de Santa Catarina,
realizou uma operação policial extravagante com base em provas duvidosas que
teve como resultado o suicídio do ex-reitor desmoralizado publicamente (o
ex-reitor sofreu o mesmo tratamento que as milhares de vítimas diárias do
aparato repressivo do Estado burguês).
Recentemente foi a vez da Universidade
Federal de Minas Gerais ser alvo de uma operação igualmente espetaculosa com
ares de operação de guerra e com base em provas também frágeis para dizer o
mínimo (isso considerando, é claro, as provas até agora apresentadas). O
sentido político das ações da PF é bastante evidente: desmoralizar as
universidades públicas taxando-as como antros de corrupção num momento de
brutal ofensiva contra essas instituições por parte do Governo Federal com
intento de realizar privatizações em benefício dos grandes monopólios da
educação.
Se o sentido político das iniciativas
da PF é bastante evidentemente, o processo histórico e político de sua subida
ao primeiro plano do aparato do Estado, ao ponto de ter um papel central no
golpe de 2016, é bem menos conhecido. Aliás, a partir de 2016, como que um
despertar de um sono profundo, as organizações do campo democrático-popular,
especialmente o PT e a Consulta Popular, passam a relembrar a existência do…
imperialismo. Como durante anos o termo/conceito imperialismo era proibido,
preferindo ideologias como “cenário internacional” ou “atores globais”, o
processo de transformação da PF num aparelho com amplas ramificações com o
Estados Unidos simplesmente não foi debatido como um problema e combatido.
Nosso objetivo nesse texto não é traçar
um amplo histórico da estruturação da PF e buscar explicar, ainda que
minimamente, como e por que ela tomou esse papel no aparato do Estado na atual
cena política. Buscamos algo bem menos ousado: queremos tão somente lembrar dos
sinais gritantes de interferência/controle do imperialismo estadunidense sobre
a PF nos anos dos governos petistas e como esse processo foi ignorado a partir
da ideologia do republicanismo ingênuo que dominou os setores majoritários da
esquerda brasileira nos últimos anos – e que mostra uma incrível persistência.
O PT, ainda antes de chegar ao governo,
embora esse processo tenha se acelerado com a primeira vitória de Lula,
abandonou o marxismo e o socialismo como referência estratégica e concepção de
mundo. Luta de classe, imperialismo, relações de produção, superexploração da
força de trabalho, Estado burguês e outros conceitos críticos foram trocados
pelas ideologias da moda.
As mudanças que se verificam não se
operam aleatoriamente, mas no sentido de recolocar a consciência que se
emancipava de volta nos trilhos da ideologia. Não é, em absoluto, certas
palavras-chaves vão substituindo, pouco a pouco, alguns dos termos centrais das
formulações: ruptura revolucionária por rupturas, depois por democratização
radical, depois por democratização e finalmente chegamos aos “alargamento das
esferas de consenso”; socialismo por socialismo democrático, depois por
democracia sem socialismo; socialização dos meios de produção por um controle
social do mercado; classe trabalhadora, por trabalhadores, por povo, por
cidadãos; e eis que palavras como revolução, socialismo, capitalismo, classes,
vão dando lugar cada vez mais marcante para democracia, liberdade, igualdade,
justiça, cidadania, desenvolvimento com distribuição de renda. A consciência só
expressa em sua reacomodação no universo ideológico burguês, nas relações
sociais dominantes convertidas em ideias, a acomodação de fato que se operava
no ser mesmo da classe no interior destas relações por meio da reestruturação
produtiva e o momento geral de defensiva na dinâmica da luta de classe [1]
Nesse processo o PT adotou o
republicanismo ingênuo como mote ideológico de ação e prática. O republicanismo
ingênuo é a ideologia que afirma existir o funcionamento de um Estado pautado
nos interesses públicos sem contaminações privatistas onde as instituições
desse Estado atuam em equilibro na divisão de poderes e competências baseadas
em critérios técnicos e legais e que os agentes, isto é, os sujeitos dessas
instituições, devem pautar-se pela isonomia e neutralidade político-ideológica
– normalmente os países centrais do capitalismo, como os EUA, são apontados
como o exemplo de republicanismo, e o Brasil, pobre diabo, sofre porque ainda
não conseguiu chegar lá por culpa do patrimonialismo, populismo, nacionalismo
ou qualquer outra invenção da ideologia dominante.
Nos anos do petismo, enquanto projeto
de conciliação de classe e gestão da ordem, todas as medidas de aprofundamento
da dependência e da dominação imperialista legadas pelos governos anteriores
foram mantidas e/ou aprofundadas. Na questão da PF a tônica não foi diferente.
Segundo reportagem do Jornal Folha de São Paulo, aparelho ideológico insuspeito
de “esquerdismo”, em 2004 (primeiro Governo Lula) a CIA participou da Operação
Vampiro da PF que “desmantelou uma quadrilha que atuava em fraudes contra o
Ministério da Saúde na compra de medicamentos” [2].
A participação da CIA junto a PF nessa
operação não foi um raio em céu azul. Mantendo a tradição legada por FHC, a
CIA, DEA e FBI, continuaram podendo atuar livremente no Brasil nos anos do PT e
estabelecer várias “parcerias” com a PF. Em 7 de janeiro de 2003, segundo o
jornal Estadão, causava polêmica entre os policiais federais o valor de 10
milhões de reais vindos dos EUA para a PF, metade repassado pela DEA (o único
critério seria usar esse dinheiro no combate às drogas que teriam os EUA como
destino). O presidente na época da Federação Nacional de Policiais Federais
(Fenapef), Francisco Garisto, afirmou ao Estadão que é “um dinheiro maldito que
causa muita discórdia na PF” [3].
Aparentemente, a “discórdia” não
impediu a continuidade das parcerias. Em 2010 (primeiro governo Dilma) foi
formalizado um acordo entre PF e Embaixada dos EUA no Brasil. O “acordo”, na
época, foi duramente criticado por Walter Maierovitch (jurista e ex-secretário
nacional antidrogas). Segundo Maierovitch – personalidade insuspeita de falta
de simpatia com o petismo -, “Opinei pela não oficialização do convênio, em
relação às drogas, porque era um acobertamento para a espionagem desenfreada,
sem limites” [4]. Ainda em 2010, Alexandre Ferreira, presidente da Fenapef,
afirmou “O que mais tem é americano travestido de diplomata fazendo
investigação no Brasil”.
Ainda segundo a reportagem da Folha de
São Paulo que estamos citando, cinco bases da PF funcionam no combate ao terrorismo
(uma ameaça iminente ao Brasil, não é mesmo?!): Rio, São Paulo, Foz do Iguaçu e
São Gabriel da Cachoeira. Todas contam com tecnologia e equipamentos da CIA e
há “agentes americanos atuando em parceria com os brasileiros” – uma pesquisa
rápida no google mostra que era tema de conhecimento nacional divulgado em
praticamente todos os jornais da grande mídia que agentes da CIA atuavam
livremente e sem qualquer controle no Brasil.
As denúncias reveladas por Edward
Snowden não foram suficientes para a presidente Dilma tomar uma postura
concreta contra a livre ações dos órgãos do imperialismo. Além de um discurso
firme, nenhuma medida concreta, muito menos revogar todas as parcerias da
embaixada dos EUA com a PF, foi tomada. O Governo brasileiro aceitou a espionagem
da CIA e NSA como um fato e parecia lamentar, apenas, a descoberta pública.
Foram mais de 13 anos de petismo e absolutamente nenhum combate à interferência
dos EUA em aparelhos repressivos estratégicos como a PF.
Durante todos esses anos o petismo
sustentou um discurso ingênuo baseado num republicanismo vira-lata de que agora
a PF tinha autonomia para atuar e a política não interferia nas suas operações.
Citando sempre as ações do Governo FHC para impedir investigações (denúncia
verdadeira), o petismo orgulhava-se da finalmente conquistada “autonomia
profissional” da PF. A situação ficou constrangedora quando a PF, aquela
finalmente profissionalizada, passou a ser um claro instrumento de derrubada do
PT do governo: nesse momento, e só nesse, as vozes petistas lembraram-se de
indagar sobre as forças políticas presentes no seio da PF – era tarde.
Se essa conjuntura valer de algo, creio
que a primeira coisa deve ser destruir de vez todas as ilusões do
republicanismo ingênuo. Nenhuma instituição é neutra e técnica destituída de
sentido político e de disputas políticas em seu seio. Na política não existe
espaço vazio. Resta, nesse momento, além de combater as ações policialescas da
PF, tentar o mais rápido possível entender no que a instituição se transformou
nesses últimos anos e a quais interesses [e como] responde.
1. Mauro Luis Iasi. As metamorfose da
consciência de classe – o PT entre a negação e o consentimento. Expressão
Popular.
*Militante do PCB/PE
APOIO: Partido Comunista Brasileiro
(PCB) de Garanhuns/PE
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