SAUDADES DE GARANHUNS

No dia 31 de dezembro de 2013, no Culto de Vigília da nossa Igreja, cantamos o hino: “Deus, somente Deus”. E aquele primeiro momento do ano iniciado, foi muito especial, onde um sentimento de gratidão permeou – com certeza – os pensamentos, receptores que são de tantas bênçãos dos céus, não só para a Igreja do Senhor, mas diretamente para a toda a família e cada um de forma específica. 

Retornado naquela madrugada, após os votos de “Feliz Ano Novo” comes-e-bebes ,abraços próprios das festividades do começo deste 2014, na quietude da varanda da nossa “Morada da Sexta Felicidade”, sentei-me na cadeira de balanço. A brisa do Rio Capibaribe acalentando a face, vendo os peixinhos do aquário, alheios à mudança do ano. O espocar de fogos já cedera lugar ao silencio da madrugada. A querida Glaucinha ao lado cochilando... 

No balançar lânguido da cadeira, eis que de repente uma saudade profunda desponta na lembrança dos dias e anos de tempos pretéritos. Um saudosismo inusitado e intempestivo se apossa de mim, nesse transpor dos umbrais dos anos. Momentos reflexivos que chegam e lá se vai uma ”olhada” fortuita para o distante que se foi. E aí me afrontam visões telúricas de momentos diversos, onde a poeira dos idos se assenta levemente não só nos objetos, mas nos fatos da vida lá nos meus distantes vividos. Afinal neste 2014 começo a minha vivencia de oitenta anos, bem vividos, bem abençoados pela Graça de Deus. Pura felicidade e no meio delas, as saudades despontam e chegam. São diversas e muitas. E ficam. 

Saudades de pedir a bênção (costume salutar antigo, hoje fora de uso). “Bença papai!, Bença mamãe!”. Pedir a bênção aos pais, aos tios era ritual salutar para o espírito. A Tia Satu (Saturnina) respondia invariavelmente: “Deus te faça feliz”, ao invés de dizer o costumeiramente: ”Deus te abençoe”. Saudade do multicolorido das roupas estendidas nos arames do quintal. Saudade da empregada Tereza lavando louça com bucha vegetal. Saudades do apito do Guarda Noturno, na ronda do seu serviço. Saudades de cantar o Hino Nacional e o Hino da Bandeira no Ginásio Diocesano no final das aulas das sextas feiras. 

Saudades, “Oh! quantas!” de ouvir manhã cedinho o apito do trem, partindo de Garanhuns, seguindo para o Recife. Saudades de ver a compoteira com doces em cima da mesa nas tardes dos domingos depois da matinê no Cinema Jardim. Ali vendo o Seriado de “Flash Gordon no Planeta Mongo”, ou os filmes de Tarzan, com Johnny Weissmuller, a bela Jane e a macaca “Cheeta”. 

Saudades de ouvir ainda pela madrugada o galinho Garnizé cantando, anunciando a chegada de mais um novo dia. Saudades de ouvir a galinha no galinheiro cacarejando após ter posto mais um ovo. Saudades das guinés: “Tô fraco...”. Saudades da máquina de costura “Singer” de Dona Francisquinha, minha mãe, pedalando no costurar das nossas roupinhas. Saudades de ver meu pai, aos domingos no almoço bem apresentável, tomando Malzebier. Saudades do caldo-de-cana, tomado nas tardes fagueiras, com pão-doce, da padaria do Sr. ”José de Souza”; Saudades de “dar uma trisca” nas bicicletas dos meninos ricos que pedalavam no Parque dos Eucaliptos. 

E o que mais de saudades? Saudades dos sábados da Feira de Garanhuns. Aquele era o meu pequeno-grande mundo. Ali para ver de tudo. Feira de muitas frutas, em especial: Jabuticabas e “Pirins”. Verduras, especiais. Muitos animais: galinhas, cabras, bodes, carneiros, pássaros engaiolados, macacos saguis, brinquedos de madeira, pequenas panelinhas de barro, lataria, cestaria, ferro-velho. Ironia do destino: o cego pedindo esmola com uma bacia de queijo do reino que ele nunca comeu. O aleijado das pernas “sentado” em uma taboa com rodas de “rolimã”, mão estendida, pedindo esmolas, olhar suplicante de fazer pena. Na tenda improvisada, o barbeiro chamado “Lambe-lambe” tricotando cabelo e passando a navalha na tira de couro para amolar... Uma roda de muita gente, com um homem ao centro com duas cobras jiboias, fazendo mesuras, dizendo que as “bichas” eram “inteligentes”. Uma toalha carcomida no chão aguardava as moedas caírem dos abestados expectadores a maioria gente dos sítios circunvizinhos. Ali pertinho a voz rouca do raizeiro: “Eu tenho remédio pra todas as doenças!”. Gritava ele desfilando um rosário das benesses das suas plantas medicinais e milagrosas. 

Saudades dos passeios no “Ford 1929 do Seu Antonio”, meu pai, pela Avenida Santo Antonio. Saudades de empinar “papagaios” (hoje se chama: ”pipa”) lá nos descampados; saudade de jogar “chimbre” ( hoje se chama bola de gude) e de girar o pião com a ponteira. Saudades de ver as lojas de Garanhuns: “Café Gloria”, “A Sultana”, “Ferreira Costa”, “A Atrativa”. Da “Agencia Reinaux” , de meu pai, que vendia peças de automóveis. Saudades dos “cascudos” ou “puxões de orelha” do Padre Adelmar, diretor do Ginásio Diocesano, moldando meu caráter e me ensinando a ser homem de bem. Saudades das Professoras Arlinda Valença e Nísia Caldas. Saudades da preta Quitéria, apelidada de “Gente”, dando cafuné, catando piolho, lavando minha cabeça duas vezes por semana. Ah! Saudades! Tantas...dos meus oito anos. Lembro até o dizer do poema de Cassimiro de Abreu do mesmo título:”Meus oito Anos”, quando diz: “Oh! que saudades que tenho, da aurora da minha vida, da minha infância querida, que os anos não trazem mais!”. 

Por fim, saudades dos conselhos e admoestações de Dona Francisquinha, minha mãe. Com aquela face meiga, tão querida e inesquecível, de tão gratas recordações, lembranças infindas oitenta anos depois. Ainda me lembro... 

Marcílio Reinaux
“Morada da Sexta Felicidade”, Beira Rio, Recife 1 de Janeiro de 2014. 

 *Marcílio Reinaux é cerimonialista, jornalista e escritor

Um comentário:

  1. O senhor me fez lembrar, com seu texto maravilhoso, do meu passado em Garanhuns, menos distante que o seu mas tão intenso e saudoso como o seu. Parabéns
    Pedro Araújo, jaboatão dos guararapes,pe

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