O presidente do Uruguai, José Alberto
Mujica, tem 78 anos e tem chamado a atenção pela vida despojada. Ele mesmo dirige
um velho fusca, ou pega um ônibus, mora numa residência excessivamente simples,
pelo menos para um Chefe de Estado. Na Assembleia da ONU, esta semana, o líder
uruguaio fez um discurso de assombrar o mundo. Parecia estar inspirado num
Pablo Neruda ou no Chaplin de "O Grande Ditador". Poético, verdadeiro, incisivo,
ele defendeu a América do Sul e a América Latina de uma maneira nova, corajosa,
foi de deixar Dilma Roussef e outros líderes de países maiores literalmente
babando.
O discurso foi extremamente longo para ser
reproduzido na íntegra. Mas é necessário que o conheçam todos. Aqui, no blog,
pinçamos alguns trechos importantes da fala monumental de Mujica. Se tivéssemos
mais gente assim na política, se o povo levasse ao poder pessoas como o
presidente do Uruguai, quem sabe o mundo seria melhor.
UMA VOZ NA DEFESA DA AMÉRICA DO SUL
Amigos, sou
do sul, venho do sul. Esquina do Atlântico e do Prata, meu país é uma planície
suave, temperada, uma história de portos, couros, charque, lãs e carne. Houve
décadas púrpuras, de lanças e cavalos, até que, por fim, no arrancar do século
20, passou a ser vanguarda no social, no Estado, no Ensino. Diria que a
social-democracia foi inventada no Uruguai.
Durante quase
50 anos, o mundo nos viu como uma espécie de Suíça. Na realidade, na economia,
fomos bastardos do império britânico e, quando ele sucumbiu, vivemos o amargo
mel do fim de intercâmbios funestos, e ficamos estancados, sentindo falta do
passado.
Quase 50 anos
recordando o Maracanã, nossa façanha esportiva. Hoje, ressurgimos no mundo
globalizado, talvez aprendendo de nossa dor. Minha história pessoal, a de um
rapaz — por que, uma vez, fui um rapaz — que, como outros, quis mudar seu
tempo, seu mundo, o sonho de uma sociedade libertária e sem classes. Meus erros
são, em parte, filhos de meu tempo. Obviamente, os assumo, mas há vezes que
medito com nostalgia.
Quem tivera a
força de quando éramos capazes de abrigar tanta utopia! No entanto, não olho
para trás, porque o hoje real nasceu das cinzas férteis do ontem. Pelo
contrário, não vivo para cobrar contas ou para reverberar memórias.
Me angustia,
e como, o amanhã que não verei, e pelo qual me comprometo. Sim, é possível um
mundo com uma humanidade melhor, mas talvez, hoje, a primeira tarefa seja
cuidar da vida.
Mas sou do
sul e venho do sul, a esta Assembleia, carrego inequivocamente os milhões de
compatriotas pobres, nas cidades, nos desertos, nas selvas, nos pampas, nas
depressões da América Latina pátria de todos que está se formando.
Carrego as
culturas originais esmagadas, com os restos de colonialismo nas Malvinas, com
bloqueios inúteis a este jacaré sob o sol do Caribe que se chama Cuba. Carrego
as consequências da vigilância eletrônica, que não faz outra coisa que não
despertar desconfiança. Desconfiança que nos envenena inutilmente. Carrego uma
gigantesca dívida social, com a necessidade de defender a Amazônia, os mares,
nossos grandes rios na América.
Carrego o
dever de lutar por pátria para todos.
Para que a
Colômbia possa encontrar o caminho da paz, e carrego o dever de lutar por
tolerância, a tolerância é necessária para com aqueles que são diferentes, e
com os que temos diferenças e discrepâncias. Não se precisa de tolerância com
aqueles com quem estamos de acordo.
A tolerância
é o fundamento de poder conviver em paz, e entendendo que, no mundo, somos
diferentes.
O combate à
economia suja, ao narcotráfico, ao roubo, à fraude e à corrupção, pragas
contemporâneas, procriadas por esse antivalor, esse que sustenta que somos
felizes se enriquecemos, seja como seja. Sacrificamos os velhos deuses
imateriais. Ocupamos o templo com o deus mercado, que nos organiza a economia,
a política, os hábitos, a vida e até nos financia em parcelas e cartões a
aparência de felicidade.
Mas esta
globalização de olhar para todo o planeta e para toda a vida significa uma
mudança cultural brutal. É o que nos requer a história. Toda a base material
mudou e cambaleou, e os homens, com nossa cultura, permanecem como se não
houvesse acontecido nada e, em vez de governarem a civilização, deixam que ela
nos governe. Há mais de 20 anos que discutimos a humilde taxa Tobin. Impossível
aplicá-la no tocante ao planeta. Todos os bancos do poder financeiro se
irrompem feridos em sua propriedade privada e sei lá quantas coisas mais. Mas
isso é paradoxal. Mas, com talento, com trabalho coletivo, com ciência, o
homem, passo a passo, é capaz de transformar o deserto em verde.
O homem pode
levar a agricultura ao mar. O homem pode criar vegetais que vivam na água
salgada. A força da humanidade se concentra no essencial. É incomensurável. Ali
estão as mais portentosas fontes de energia. O que sabemos da fotossíntese?
Quase nada. A energia no mundo sobra, se trabalharmos para usá-la bem. É
possível arrancar tranquilamente toda a indigência do planeta. É possível criar
estabilidade e será possível para as gerações vindouras, se conseguirem
raciocinar como espécie e não só como indivíduos, levar a vida à galáxia e
seguir com esse sonho conquistador que carregamos em nossa genética.
Mas, para que
todos esses sonhos sejam possíveis, precisamos governar a nos mesmos, ou
sucumbiremos porque não somos capazes de estar à altura da civilização em que
fomos desenvolvendo.
Este é nosso
dilema. Não nos entretenhamos apenas remendando consequências. Pensemos na
causa profundas, na civilização do esbanjamento, na civilização do usa-tira que
rouba tempo mal gasto de vida humana, esbanjando questões inúteis. Pensem que a
vida humana é um milagre. Que estamos vivos por um milagre e nada vale mais que
a vida. E que nosso dever biológico, acima de todas as coisas, é respeitar a
vida e impulsioná-la, cuidá-la, procriá-la e entender que a espécie é nosso
“nós”.