LUZES DA CIDADE
Nossa série começou com um grande romance, Casablanca, e prosseguiu com o filme mais político de Charles Chaplin, O Grande Ditador, a notável sátira ao regime implantado na Alemanha por Adolf Hitler. Hoje, voltamos a escrever sobre o genial cineasta britânico, que encantou e continua a encantar o mundo com suas inigualáveis produções.
O diretor inglês que depois migrou para Hollywood tem muitas obras primas, talvez pelo menos meia dúzia ou dez poderiam ser incluídas nesta seção do blog.. Tempos Modernos, O Circo, O Garoto, Em Busca do Ouro, Luzes da Ribalta e Luzes da Cidade bem merecem estar na relação de Filmes Inesquecíveis da História da Sétima Arte.
Pessoalmente, defendo que pelo menos três deles são imperdíveis, precisam ser vistos por quem ama as artes, a literatura, o cinema e a humanidade. São eles Tempos Modernos, outra vez o gênio se antecipando no tempo e criticando - já em 1936 - o avanço e os efeitos nocivos da tecnologia; O Grande Ditador, citado há pouco e comentado meses atrás; e Luzes da Cidade, uma obra terna e simples, um mero drama de picadeiro de circo se estivesse nas mãos de um cidadão comum. Dirigido e escrito pelo inglês, este longa se fez uma peça delicada e bela, capaz de arrancar risos e emocionar até as mais rudes criaturas.
Quando Luzes da Cidade estreou, o cinema falado já estava se estabelecendo. As produções mudas estavam fadadas a desaparecer. Charlie, porém, mestre da pantomina, ainda desta vez dispensou os diálogos e privilegiou os gestos, ainda que tenha usado legendas substituindo falas e usado a trilha sonora para passar recados.
Neste trabalho magnífico (e nesses textos sobre cinema ou música não há porque temer os adjetivos), o enredo é singelo. Carlitos, o vagabundo, conhece uma bela florista. Fica entusiasmado com a beleza e a pureza da jovem. Logo descobre que a moça é cega e esta, no contato com o desconhecido, o imagina milionário. Uma porta de carro de luxo batendo, nas proximidades do seu local de trabalho, é a senha que leva à confusão: a florista o imagina rico.
Carlitos descobre que a personagem passa por problemas financeiros, junto com sua mãe, tendo dificuldades até para pagar o aluguel. O herói resolve ir à luta para ajudar sua amiga, fazendo trabalhos de diversos tipos para conseguir dinheiro. Depois, descobre num jornal que uma cirurgia pode devolver a visão à florista. E seu ideal passa a ser conseguir viabilizar a operação.
O vagabundo conhece um milionário excêntrico. Este, quando está bêbado, se toma de amores pelo homem humilde e mal vestido. Dá-lhe carro, dinheiro, abre as portas de sua mansão... Quando está sóbrio não reconhece o amigo. Esse relacionamento proporciona as cenas mais engraçadas do filme, com momentos de extrema criatividade. Lembro bem de duas dessas tiradas: quando o ricaço e o pobretão estão numa festa e este último começa a dançar com uma madame, deixando o seu par e todos em volta surpresos e “malucos”com aquela figura patética rodopiando de maneira quase elétrica no salão. As expressões, os gestos, a dança... é tudo muito engraçado. A gente fica a imaginar como é que da cabeça de um sujeito nasce uma idéia daquelas. O nosso Renato Aragão imitaria muito Chaplin, ao longo de sua carreira, mas a meu ver sem nunca conseguir pelo menos uma vez chegar pelo menos perto da criatividade do cineasta britânico.
Outra cena inesquecível é quando Carlitos participa de uma luta de boxe. Magro, desajeitado, frágil, tem pela frente um gigante. Resiste, porém, vários rounds no ringue, rodopiando pra lá e pra cá, se escondendo atrás do juiz, dando vários murros ou tapas no adversário. São alguns minutos que valem ouro e “pagam o ingresso”, como a gente dizia antigamente. O vagabundo com sua dança no tablado ridiculariza o lutador, o juiz, o público, a força física, o próprio esporte, para deleite do espectador que se delicia com o show de imagens criado pelo diretor.
Como em quase todos os filmes de Chaplin temos a alternância do riso com o drama, um olhar social, uma visão crítica dos figurões e das autoridades. Tome-se como exemplo o policial, ou o guarda. Aparece sempre como uma figura ameaçadora, arbitrária, capaz de assustar os humildes. É como se estivesse implícito um recado: “O soldado é para meter medo e não para proteger”. O vagabundo, na maioria dos trabalhos de Charlie, desmoraliza o homem de farda.
O riso é saudável, alegra a vida, faz relaxar. E Chaplin é bom demais no que faz. Mas a emoção que leva às lágrimas, que amolece o coração dos duros também é bem vinda, pode levar as pessoas a extravasar muita coisa presa ou escondida nos subterrâneos da mente.
Carlitos consegue o dinheiro para a cirurgia da florista. É tido, no entanto, como ladrão, vai para a cadeia. Quando se livra das grades, tempos depois, reencontra a mocinha podendo ver o mundo, as pessoas. Ela, sem conseguir descobrir o milionário que pagou sua operação, enxerga pela primeira vez o vagabundo. Garotos zombam do pobre homem. A moça ri da cena. Ele a olha, deslumbrado, feliz. “Fiz uma conquista”. A personagem pronuncia algo assim, com ironia. Cai uma flor. A heroína pega outra e vai entregar ao “pobre diabo”. Involuntariamente toca em suas mãos e captura a verdade. “Você?”. Essa cena é muito bonita, extremamente bem interpretada e bem realizada pelos atores e pelo diretor. Pura ternura. Pura beleza. Luzes da Cidade é um filme para se ver muitas vezes e amar sempre.
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