Temos vacinas. Pelo menos para quebrar a angustia e a aflição
disseminadas no país por um governo que se repete em crimes de
responsabilidade. Se crimes econômicos e de má gestão pública atingem em cadeia
e gradualmente – às vezes, lentamente é que a população percebe -, crimes
contra a saúde pública têm consequências imediatas. Maus governantes são
capazes de cometerem crimes contra a humanidade, por veleidade, desumanidade,
intolerância e incultura extremadas. O Brasil vive um momento de inconsequência,
atingindo o limite – provável – da Covid-19 em Manaus, resultado da
prevaricação e da incompetência de gestores públicos.
É diante do caos que a esperança se fortalece. Temos vacinas (a
autorização), apesar das resistências. A Anvisa, Agência de Vigilância
Sanitária, em surpreendente posição de autonomia, aprovou a aplicação
emergencial da CoronaVac e da Oxford/AstraZeneca. Uma vitória da ciência. Uma
decisão alentadora para quem se sente sob o império de maus governantes. Uma
autorização, explicitamente contra a vontade político-ideológica do presidente
Jair Bolsonaro – o imunizante da Sinovac/Butantã era o alvo dos negacionistas
-, que gera uma expectativa de menos mortes, menos contágio e o início da saída
do atoleiro econômico e social do país.
A ciência triunfou. É extraordinário, porém o conhecimento irá sempre
enfrentar o ódio e o boicote dos místicos pregadores do sobrenatural e dos
incultos propagadores da distorção e do avesso. Podemos nos vacinar, mas onde
estão as vacinas? Propositalmente atrasadas, assim como toda a logística
necessária para a sua produção, preservação e distribuição. O improviso domina
o início da vacinação, a partir da autorização concedida pela Anvisa, culpa
partilhada entre a agência e um governo negacionista mal intencionado, que
obstruiu a chegada de vacinas – por questões ideológicas (China e agora,
Rússia) -, que nega a sua eficácia e que torce para que fracassem, e se sinta
assim vencedor em suas sandices.
Temos a autorização e assistimos a uma disputa política por paternidade.
Um escárnio sobre os brasileiros angustiados, aflitos, desolados ou em luto.
Ex-aliado incondicional, que lucidamente se pôs a favor da ciência e da vida –
no devido momento -, cabe ao impalatável e inconfiável governador de São Paulo,
João Dória, o crédito pelo país ter hoje um mínimo de vacinas e uma autorização
para a vacinação. Bolsonaro, que nega a eficácia, particularmente a originária
da China, e disseminou pelas redes sociais a falsa eficácia de protocolos
anticientíficos (hidroxicloroquina, ivermectina etc), agora é vencido pela
ciência e se submete a uma vexatória derrota para Dória.
A ciência venceu, a vacinação começou, mas
não temos vacinas. As seis milhões de doses compradas pelo governo paulista à
Sinovac (China) são 3% da população. O blefe de Bolsonaro sobre os dois milhões
de doses da AstraZeneca da Índia não tem data para ser revertido, uma
paspalhada do governo que não pode ser escondida. Uma fake news oficial que
agora depende da boa vontade indiana. Todavia, temos o fio da esperança – a
autorização para vacinar – e jogamos todas as esperanças na produção em massa
pelo CoronaVac/Butantã e a Oxford/AstraZeneca/Fiocruz.
Se outras vacinas já foram autorizadas por agências, em seus países de
origem, como a russa Sputnik V, sendo aplicada nos russos e argentinos, é
criminoso negar ao Brasil a sua aplicação emergencial, no momento de
calamidade sanitária que vive o país. Esperar que se cumpram as etapas de
pesquisas que foram cumpridas em outros países é ter que aguardar por meses e
assistir dia-a-dia a morte de centenas de brasileiros. Essa tragédia não
incomodará aos negacionistas, como não incomodou até o momento as 210 mil
mortes, mas postergará a aflição, a angústia e o luto das famílias.
A CoronaVac e a Sputnik V pagam o preço do ódio ideológico que a Guerra
Fria deixou como herança. Vidas não importam a extremistas. Não importa vacina
não ter pátria e ciência não ter fronteira, se os “contra” negam a sua
eficácia. Afinal, por ser chinesa ou russa as vacinas mexem com o imaginário
belicoso de Bolsonaro e de generais que não conseguem romper com 1964. A
CoronaVAc e a Sputnik V povoam a cabeça de cegos ideológicos, fanáticos
pentecostais, derivações da infâmia e apostadores no desvalor humano.
Começamos a vacinar, após o triunfo da ciência. A Anvisa se mostrou
lúcida, descartando a palavra final a quem desacredita no conhecimento e
reproduz a dúvida e o medo. Todavia se fez reticente ao barrar sumariamente a
vacina russa. Um passo à frente, atrasado e lento, mas que abriu a esperança em
meio à incerteza, que não pode ser anulado por um passo atrás. O que o país
espera é que a Anvisa consolide a sua autonomia e sensatez. O Brasil precisa de
todas as vacinas.
*Ayrton Maciel é jornalista. Trabalhou no Dario de Pernambuco, Jornal do Commercio e nas rádios Jornal, Olinda e Tamandaré. Ganhador do Prêmio Esso Regional Nordeste de 1991.
Foto destaque: Após ser pioneiramente
vacinada contra a Covid-19, enfermeira Mônica Calazans festeja ao lado do
governador João Dória (SP). Internet.
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