Do site Pragmatismo Político
Por José Geraldo Couto
Não pode haver filme mais
atual – especialmente para nós, brasileiros – do que o polonês The hater – Rede
de ódio, de Jan Komasa, que acaba de chegar à Netflix. O filme é deste ano, e
chegou depressa ao streaming porque a pandemia de covid forçou o fechamento dos
cinemas no mundo todo logo depois que ele entrou em cartaz na Polônia, em
março.
Ao acompanhar algumas semanas
ou meses na vida do jovem Tomasz Giemsa (Maciej Musialowski) em Varsóvia, The
hater lança luz sobre o mecanismo de funcionamento das redes de ódio e fake
news que infestam a internet, tornando quase irrespirável a atmosfera de nossa
época. Mais que isso: o filme expõe as articulações desse submundo virtual com
a deterioração do debate político e o recrudescimento de tendências como a xenofobia,
o racismo, a homofobia e a intolerância religiosa.
Mas não se trata propriamente
de um libelo político ou de uma denúncia “exterior”, e sim de uma tentativa de
imersão no mundo emocional e psíquico de alguém que está no meio dessa
engrenagem, alimentando-a e ao mesmo tempo sendo alimentado por ela. Por isso a
narrativa não se descola jamais do ponto de vista de Tomasz, ou Tomek, como é
chamado, buscando apreender suas motivações.
E Tomek é, antes de tudo, um
ressentido. A primeira cena o mostra num momento de humilhação: flagrado por
plágio num trabalho acadêmico, é expulso da faculdade de direito e ainda recebe
uma lição de moral dos diretores da escola. Em seguida, ficamos sabendo que ele
é um rapaz pobre do interior cujas despesas escolares são bancadas por uma
família progressista, cosmopolita e intelectualmente sofisticada. Num jantar na
casa bacana da família, ele é tratado com condescendência pelo casal de
meia-idade e pela jovem e bela filha, Gabi (Vanessa Aleksander).
Antes de sair da casa, Tomek
deixa disfarçadamente seu celular no sofá, no modo de gravação. Pouco depois,
volta para recuperá-lo e, a caminho de casa, ouve as frases de escárnio com que
seus benfeitores se referiam a ele às suas costas. Antes disso, ao se despedir
de Gabi, diz que gostaria de manter contato com ela. A moça diz: “Peça minha
amizade no Facebook”. E ele: “Eu já pedi. Há sete anos.” A essa altura, com
poucos minutos de filme, já temos os dados básicos: o perfil psicossocial do
protagonista, sua desenvoltura com a tecnologia digital e a subcorrente sexual
que percorrerá todas as relações.
Do recalque à ação
A condição de humilhado é a
base do comportamento de Tomek e da sua leitura da realidade. Inteligente e
ambicioso, ele se emprega numa agência que presta serviços de marketing
eletrônico. Entre outras coisas, o que se faz ali é derrubar a imagem de firmas
concorrentes das empresas dos clientes. Logo a coisa envereda para as campanhas
políticas, com perfis falsos de internet feitos para espalhar fake news, destruir
reputações, insuflar ódios diversos. Qualquer semelhança com certo gabinete
instalado no Planalto Central talvez não seja mera coincidência.
Dos ódios virtuais à
violência real é um passo. Para concentrar na trajetória de um único personagem
todas as questões que levanta, o diretor Jan Komasa se descuida às vezes da
verossimilhança, engendrando situações não muito críveis, mas vá lá:
acreditamos no personagem (graças em grande parte à excepcional atuação de
Musialowski), e é isso que importa. Desse modo, o filme consegue ser, ao mesmo
tempo, um thriller político e um estudo sobe a solidão e o recalque.
Mais do que propriamente o ódio, é o ressentimento que move Tomek e seus parceiros de desatino – como o sinistro Guzek, um bobalhão aficionado por videogames, que mora com a avó doente e tem tara por armamento pesado. Imagine, digamos, um tenente expulso do exército por mau comportamento, ou um deputado do baixo clero desprezado pelos colegas, ridicularizado pela imprensa e ignorado pela intelectualidade. Uma figura assim, com poder na mão, é um perigo incalculável.
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