CONTEXTO

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Pesquisas Eleitorais

O PRESENTE DE ALINE - Um conto de Roberto Almeida

Riobaldo já estava fora há muito tempo e ansiava pela hora de voltar. Não pela cidade, as casas modestas, a praça sem graça, a igreja reunindo jovens e velhos sem imaginação. Não pelos campos secos, os barreiros vazios, currais tristes de poeira e bosta de gado, sob os cuidados de camponeses rústicos, usando chapéu, botas, um sorriso idiota de canto a canto da boca. Nada daquilo lhe batia no peito. Fosse por aquele mundo, ficaria para sempre ali mesmo em São Paulo, ou no Rio de Janeiro, em Belo Horizonte, até mesmo no interior de Goiás.

Ela que o atraia de volta, o seu corpo, os seus olhos, a sua boca fresca, tímida, sem ter o que dizer, porque se expressava mais pela pele morena, por gestos e atitudes. Ninguém, nem ele mesmo conseguiria explicar aquela química, uma espécie de magia, um estranho e explosivo amor, que desobedecia ao receituário geral dos romances e das telenovelas. Mais estava em seu pensamento, o tempo todo, mesmo quando não se apercebia disso, distraído no trabalho, ou assistindo Santos e Palmeiras, vendo TV, lendo jornais ou vendo um filme num dos multiplex da cidade.

E fora um tempo tão curto, o deles, menos de um ano; romance proibido, cheio de medos e dúvidas, somente sexo, uma transa, um caso. No começo ele pensava assim, ela também, embora tenha percebido primeiro o algo mais. Ficou apaixonada, sonhando com o impossível, sem dizer nada, somente passando aquele sentimento através dos olhos e de todos os silêncios, que se tornaram ainda mais intensos. 

Só depois que foi embora descobriu a verdade lá dentro dele. E chorou pela primeira vez em muitos anos. Um choro forte, demorado,  revelador de tudo que ela representou e representava, apesar das limitações evidentes, dos preconceitos, da rejeições e das cobranças. De todos os lados: pai, mãe, irmãos, amigos, vizinhos, desconhecidos que os olhavam enviesados, como se fossem de outro planeta. 

Mas naquele dia, já na Pauliceia, ficou claro que para ele o amor era um fato, superior a todas as convenções e tratados. Nem mesmo Marx, com explicações materialistas, sustentadas em bases econômicas, poderiam lhe endurecer a alma e o coração.  Tinha de ser piegas, fraco, romântico, humano e por uma vez na vida trocaria os discos de Chico, Caetano e Milton, por baladas românticas de Roberto. 

Por determinados momentos parecia estar louco. Quando ainda em estado de embriaguez ou insanidade, ligava para o PS da cidade e quando não conseguia localizá-la ficava imaginando mil coisas, doente de ciúme, convencido de que fora esquecido, ela arranjara outro, estava sendo traído. O peito doía de uma forma desconhecida e a vontade de vê-la, abraçá-la, era maior que o próprio estado de São Paulo, onde agora vivia. 

E quantas vezes, dentro dele, relembrou de alguma forma aquela misteriosa e inacreditável primeira vez? O corpo tremia de uma forma inexplicável, não conseguia nem localizar a rua em que estava fincado o motel do primeiro beijo.

- O que você tem? - perguntou, parecia mesmo nunca ter visto um homem naquele estado. 

- Nada, tudo bem. Não se preocupe. 

Com muito esforço diminuiu o tremor, provocado pela visão daquela timidez, daquelas saias curtas azuis, deixando à mostra completamente pernas e coxas perfeitas, jovens, elegantes. Os cabelos castanhos, leves, arrumados despretensiosamente, os olhos dominando tudo, como se perguntassem, e já respondessem, fazendo um carinho.

E logo estavam num quarto só deles, como se não existisse mais ninguém no mundo e tivessem todo o direito de pecar ou, melhor ainda, de se empanturrar de felicidade.  Tirou a roupa da namorada com o gosto das descobertas, apreciando cada parte do corpo de menina: os peitos duros, perfeitos, acenando-lhes com promessas que o deixaram ainda mais excitado.

Beijou o seu pé como quem faz uma carícia numa flor, cobriu-lhe o corpo inteiro de beijos doces e puros, sentiu sua boca, seu cheiro de campo, penetrou seu sexo como quem faz uma viagem ao paraíso recém criado; aqui mesmo, neste planeta, nesta dimensão. 

Foi uma noite que demorou como uma eternidade, esquecidos dos livros, dos tratos, dos compromissos, das dívidas, dos afazeres no comércio. Depois de tantas aventuras, do conhecimento de mulheres maduras, experientes, sensuais, aquela definitivamente parecia a sua primeira vez. 

Era sexo, sim. Como fora com outras, mas também tinha outra dimensão, um componente diferente, desconhecido, que lhe permitia sentir um prazer maior, sem culpas, capaz de o deixar totalmente satisfeito. 

A companheira, que numa sintonia perfeita parecia estar vivendo a mesma situação, resumiu o momento numa frase curta, despida de reflexões ou influências literárias.

- Não sabia que você era tão gostoso - disse, com a maior simplicidade e naturalidade do mundo, como se estivesse elogiando as suas roupas ou sapatos novos. 

Depois tiveram outros momentos, alguns nem foram tão belos e intensos como aquele primeiro. Outros, contudo, multiplicaram o desejo, a chama, o sentimento. Profundamente envolvidos, apaixonados, um pertencendo ao outro. 

Durante meses aproveitaram todo instante fora do trabalho para sair, conhecer restaurantes, frequentar bares, visitar praias, passear nas praças e sobretudo amar-se em leitos diversos, aconchegantes e macios. 

Isso até que sentiu a cabeça girar demais, alimentando remorsos, inquietações, como se tivesse pegado o caminho errado. Parecia que ia pirar.  Aquela embriaguez poderia dominá-lo o resto da vida, prejudicar sua carreira profissional, seus planos, sua convivência social.  Era preciso pôr um fim no romance, nem que tivesse de ir embora. 

E foi assim que fez. Vendendo o carro, os poucos trecos que tinha, doando os livros, os discos, entregando a casa, indo se despedir do pai, da mãe, dos irmãos e dela também. Convencido de que estava fazendo o mais sensato, tomando uma decisão positiva, facilmente entendida por todos, inclusive por ela, que não dissera muita coisa, como sempre; não protestara, apenas de despedira, com expressão de tristeza. 

Passaram-se anos ali, na dureza da cidade grande. Vendeu bugigangas no centro de São Paulo, entregou mercadorias nas favelas, montou um bar, ganhou dinheiro, perdeu tudo depois de um daqueles planos mirabolantes do governo, correu dos credores para Brasília, depois Goiânia. 

Até garimpeiro foi, por uns tempos. 

Voltou à Pauliceia e recomeçou, montou uma fábrica de fundo de quintal. Comprou um carro novo, uma casa, deu a volta por cima. O choro do primeiro dia, admitindo pela primeira vez que a amava, foi ficando pra trás. Os telefonemas, o ciúme, gestos e sentimentos foram encaixotados, permanecendo guardados por um longo período. 

Mas Riobaldo sabia, lá dentro dele, que não conseguia esquecê-la. Saía com uma, com outra, casou, separou, arranjou uma amante e o coração, burro e teimoso, insistindo, piegas, transportando-o para mais de dois mil quilômetros de distância. 

Lutou contra aquilo, como fizera antes, não queria fraquejar, agir como um tolo romântico, um imbecil. A vida era a vida, diferente das músicas cafonas que infestam as rádios e dos amores impossíveis da TV.  Procurava ser racional, lógico, frio, no entanto as decepções com as namoradas, o desejo insatisfeito, as frustrações no trabalho, uma certa infelicidade latente, em meio a uma série de conquistas profissionais, o remetiam ao paraíso do passado. 

Um dia resolveu parar de lutar e foi tomado pelo desejo de vê-la. Precisava desesperadamente dos seus olhos, do seu silêncio, de sua calma, do seu corpo pequeno, de suas frases inocentes, quase infantis.

Tratou de preparar as coisas, acertar as pendências para fazer a viagem, a ansiedade mexendo com os seus nervos. Os amigos estranhando, dando conselhos, sem saber o que ia no coração do pernambucano, uma vez que ele nunca tinha feito muitas revelações do seu tempo lá no Nordeste. 

Agora, que estava resolvido, contava os dias, as horas, sem se importar com mais nada. Somente pensava em atravessar os céus, pisar no chão do aeroporto, percorrer os 300 km de carro. Alugar um táxi, descobrir o sítio em que ela estava. 

Sem nenhum contato, nos últimos anos, nem sabia se tinha casado, se tivera filhos ou mesmo se estava viva, pois também se morre jovem. 

Pensava irracionalmente, tinha certeza mesmo que estava solteira, solitária, esperando-o, como se o tempo não tivesse passado. E seria bom vê-la, somente vê-la, mesmo que depois voltasse, esquecendo para sempre aquela aventura irresponsável, segundo admitia em momentos de fingida lucidez.

Então chegou o dia, o avião levantou voo e Riobaldo viu São Paulo sumindo, ficando distante, se apequenando, sem congestionamento e poluição. Procurou ler os jornais disponíveis a bordo, tomou vinho, uma dose de uísque, comeu pouca coisa da comida horrível que serviram, detestou os sobressaltos provocados pela aeronave, sacudida por ventos. Respirou aliviado quando pisou em terra firme, perto dos simples mortais que só andam de ônibus.

Numa locadora de automóveis, alugou um carro e pegou o caminho de Pernambuco, passando por terras dominadas pela cultura da cana de açúcar, o verde já diferente do observado no interior de São Paulo. Com pouco mais, o semiárido, gado pastando, homens e mulheres pela estrada, gente na roça.

Cruzou por cidadezinhas parecidas, vilas, acampamentos dos sem terra, a bandeira do MST tremulando aqui e ali. Parou para uma refeição ligeira, duas horas e meia depois, ganhando ânimo para a última etapa da viagem. Agora  estava perto,  em menos de uma hora chegaria a seu destino, iria revê-la. 

Com pouco, passou pela cidadezinha, que à primeira vista não mudara nada. Casas simples, calçamento irregular, carro de boi ainda circulando pela rua, olhos curiosos no carro do forasteiro, a igreja dominando a praça. Um ar de tristeza dando o tom ao cenário, a vida das pessoas parecendo muito besta, como no poema de Drummond. 

Pegou a estrada de terra, disposto a vencer logo os 10 ou 12 quilômetros restantes. Dentro de poucos minutos entrava no sítio, o mato dominando a entrada, o coração ajudando-o a acertar o caminho. 

Encostou o carro na frente da casinha do Sítio Cajazeiras, da lá saiu dona Nesside, o rosto tostado de sol, o vestido preto, um luto de 20 anos, lenço na cabeça, uma expressão de quem deseja perguntar: "O que o senhor está fazendo aqui"?. 

Riobaldo não deu tempo da velha senhora falar, perguntou logo por Aline, queria vê-la.

- Está no barreiro, lavando roupa - informou dona Nesside, apontando o caminho do reservatório d´água. 

Tomou o caminho do barreiro, que ficava perto, em dois minutos estava lá, na frente dela, olhando-a com intensidade, admirado, parecendo não acreditar que a via; os mesmos olhos, ainda mais bonitos, os cabelos mal cuidados, uma roupa simples, a pele queimada do sol, parecendo ter terra nas mãos, nos braços e nas pernas. As coxas grossas, firmes, o tempo não a maltratara, permanecia bela e, assim como a encontrara, tão rústica, natural, parecia ainda mais atraente. 

- Você!!? - foi a reação dela como se mesclasse sentimentos de incredulidade, revolta e felicidade. 

- Sim - foi tudo que conseguiu dizer, naquele primeiro momento. Depois, sentindo que precisava acrescentar alguma coisa mais, após tanto tempo, perguntou como ela estava, como estava a vida naquele lugar.

- Péssima - reagiu - como se o culpasse por tudo.

Após essa palavra dura, levantou-se, pois se encontrava agachada, lavando uns panos, e os dois, sem palavras, se dirigiram à casa onde a mãe e as irmãs os esperavam, curiosos.  A sala era no tijolo, nenhum compartimento da casa havia sido revestido de cimento, nas paredes fotos da família e retratos de santos, São Jorge no cavalo branco, o padre Cícero, Frei Damião.

Sentaram num bancos duros, o sítio não tinha energia elétrica. O rádio e a televisão eram luxos distantes. Uma mesa antiga, de madeira tosca, sem toalha, quase enchia a sala. Quatro ou seis tamboretes ao redor. Perguntou a dona Nesside pela saúde, ouviu
 a senhora falar que estava tudo bem, graças a Deus.

Apesar do diálogo sem graça, da pobreza - do absurdo daquela situação, pessoas viverem assim no início do século XXI - Riobaldo sentia uma felicidade leve percorrer-lhe o corpo, por estar perto dela, sentindo seu cheiro, admirando seu jeito tímido e selvagem. 

Ficou uns instantes a sós com a mãe de Aline, que sumiu para o terreiro; imaginou, até, que retornara ao barreiro, todavia não demorou muito, retornando à casa com um pacote nas mãos. 

Quando voltou a falar, foi para dizer, enigmática:

- Isso aqui é para você.

Ficou sem entender, pegou o embrulho, descobriu que eram feijões verdes; tentou recusar, educadamente, não via muito sentido sair dali levando aquele pequeno embrulho de feijão. 

Os olhos dela quase cuspiram fogo com a recusa, nem tentou disfarçar a raiva, como se ele estivesse cometendo a maior grosseria. E logo, estudando melhor a sua reação, percebeu que estava sendo grosseiro mesmo, aquele era o presente de Aline, o único que ela podia lhe dar, uma prova de que continuava a amá-lo.

- Você não se casou...? - ensaiou perguntar, como se estivesse com medo. 
- Não, vivo só. Eu e minha filha - disse, sem considerar a mãe e irmãs. 

- Filha!!! - parece que uma estaca fora enfiada no coração de Riobaldo.

Informou, como se fosse a coisa mais natural do mundo, que tivera uma filha dele. Quando partira a deixara grávida. A menina nascera ali, no mato, sem médicos nem parteira. Estava crescida, já ia á escola, preenchia a sua vida sem diversão e sem namorados.

Quis saber porque nunca havia lhe comunicado sobre a menina, por que a estava criando sozinha, com sacrifícios.

- Ora, você tem sua vida lá, não tinha porque aborrecê-lo - explicou secamente, perguntando, um tanto ansiosa, se ele queria conhecer Vânia, a filha. 

- Claro que quero - disse, meio irritado, com aquele jeito de ela se expressar. Será que julgava ele um monstro, indiferente à própria filha, que agora sabia existir?

- Hoje não vai dar, porque ela está na casa de madrinha, só vem amanhã. Se quiser passe aqui, poderá conhecê-la.

Riobaldo entendeu que teriam muito o que conversar, ele e Aline. Apenas não poderia ser naquele momento, com dona Nesside e os outros da casa por perto. Voltaria, conheceria Vânia e sairiam de carro, procurariam um lugar para ficar sozinhos e dizer tudo que tinha para ser dito. 

Levantou-se e despediu-se de dona Nesside, sendo acompanhado pela filha da camponesa até o automóvel. "Amanhã eu venho", anunciou, olhando-a com um misto de carinho e admiração. Ela parece ter entendido, demonstrou satisfação e entregou novamente a ele o pequeno pacote de feijões verdes, os olhos brilhando de uma felicidade meio que escondida. 

Ao sair do carro, deixando para trás aquela casa perdida no meio do mato, no Sítio Cajazeira, não demorou a entender os sentimentos daquela mulher. Ela estava feliz com a sua volta. Guardara-se para ele, esperara anos, indiferente aos conselhos da mãe e das irmãs pedindo que o esquecesse.

Paradoxalmente, a filha que nascera do relacionamento deles não era o principal naquele momento. O que importava era sua volta, a certeza de que ele correspondia aos seus sentimentos. Não pôde mostrar Vânia, que estava ausente, não pôde beijá-lo, pois não ia mostrar-se oferecida, ainda mais na frente da mãe. Daí a importância de colher aqueles feijões, frescos, naturais como os sentimentos que nutria por aquele homem. 

Com uma mão na direção, passou a outra no pacote de feijões, arrancados há pouco. Era como se eles falassem, mais do que os embrulhos elegantes feitos nos shoppings de São Paulo, mais do que os perfumes, aparelhos de som e camisas recebidos dos amigos e namoradas dos tempos vividos na Pauliceia.

Aqueles feijões, poucos, mal acomodados, prontos para a panela no dia seguinte, eram a prova de que não estava errado. De que tinha de vir para revê-la, para sentir que aquele amor não fora mentira nem ilusão, para dar e receber tudo que ficara guardado tantos anos.

A saída da sala, o ato de arrancar o feijão, talvez plantado por ela mesma, a entrega do saquinho plástico com o produto era apenas um gesto. Um sinal de que queria agradá-lo, dizer que era bem-vindo. 

Riobaldo se repetia e estava contente consigo mesmo. Nem pensava mais em Vânia, somente no outro dia o preocuparia o fato de ter uma filha. Agora, estava feliz simplesmente pelo presente que lhe fora dado por Aline. 

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