Riobaldo já estava fora há muito tempo e ansiava pela hora de voltar.
Não pela cidade, as casas modestas, a praça sem graça, a igreja reunindo jovens
e velhos sem imaginação. Não pelos campos secos, os barreiros vazios, currais
tristes de poeira e bosta de gado, sob os cuidados de camponeses rústicos,
usando chapéu, botas, um sorriso idiota de canto a canto da boca. Nada daquilo
lhe batia no peito. Fosse por aquele mundo, ficaria para sempre ali mesmo em
São Paulo, ou no Rio de Janeiro, em Belo Horizonte, até mesmo no interior de
Goiás.
Ela que o atraia de volta, o seu corpo,
os seus olhos, a sua boca fresca, tímida, sem ter o que dizer, porque se
expressava mais pela pele morena, por gestos e atitudes. Ninguém, nem ele mesmo
conseguiria explicar aquela química, uma espécie de magia, um estranho e
explosivo amor, que desobedecia ao receituário geral dos romances e das
telenovelas. Mais estava em seu pensamento, o tempo todo, mesmo quando não se
apercebia disso, distraído no trabalho, ou assistindo Santos e Palmeiras, vendo
TV, lendo jornais ou vendo um filme num dos multiplex da cidade.
E fora um tempo tão curto, o deles,
menos de um ano; romance proibido, cheio de medos e dúvidas, somente sexo, uma
transa, um caso. No começo ele pensava assim, ela também, embora tenha
percebido primeiro o algo mais. Ficou apaixonada, sonhando com o impossível,
sem dizer nada, somente passando aquele sentimento através dos olhos e de todos
os silêncios, que se tornaram ainda mais intensos.
Só depois que foi embora descobriu a
verdade lá dentro dele. E chorou pela primeira vez em muitos anos. Um choro
forte, demorado, revelador de tudo que ela representou e representava,
apesar das limitações evidentes, dos preconceitos, da rejeições e das
cobranças. De todos os lados: pai, mãe, irmãos, amigos, vizinhos, desconhecidos
que os olhavam enviesados, como se fossem de outro planeta.
Mas naquele dia, já na Pauliceia, ficou
claro que para ele o amor era um fato, superior a todas as convenções e
tratados. Nem mesmo Marx, com explicações materialistas, sustentadas em bases
econômicas, poderiam lhe endurecer a alma e o coração. Tinha de ser
piegas, fraco, romântico, humano e por uma vez na vida trocaria os discos de
Chico, Caetano e Milton, por baladas românticas de Roberto.
Por determinados momentos parecia estar
louco. Quando ainda em estado de embriaguez ou insanidade, ligava para o PS da
cidade e quando não conseguia localizá-la ficava imaginando mil coisas, doente
de ciúme, convencido de que fora esquecido, ela arranjara outro, estava sendo
traído. O peito doía de uma forma desconhecida e a vontade de vê-la, abraçá-la,
era maior que o próprio estado de São Paulo, onde agora vivia.
E quantas vezes, dentro dele, relembrou
de alguma forma aquela misteriosa e inacreditável primeira vez? O corpo tremia
de uma forma inexplicável, não conseguia nem localizar a rua em que estava
fincado o motel do primeiro beijo.
- O que você tem? - perguntou, parecia
mesmo nunca ter visto um homem naquele estado.
- Nada, tudo bem. Não se
preocupe.
Com muito esforço diminuiu o tremor,
provocado pela visão daquela timidez, daquelas saias curtas azuis, deixando à
mostra completamente pernas e coxas perfeitas, jovens, elegantes. Os cabelos
castanhos, leves, arrumados despretensiosamente, os olhos dominando tudo, como
se perguntassem, e já respondessem, fazendo um carinho.
E logo estavam num quarto só deles,
como se não existisse mais ninguém no mundo e tivessem todo o direito de pecar
ou, melhor ainda, de se empanturrar de felicidade. Tirou a roupa da
namorada com o gosto das descobertas, apreciando cada parte do corpo de menina: os peitos duros, perfeitos, acenando-lhes com promessas que o deixaram ainda
mais excitado.
Beijou o seu pé como quem faz uma
carícia numa flor, cobriu-lhe o corpo inteiro de beijos doces e puros, sentiu
sua boca, seu cheiro de campo, penetrou seu sexo como quem faz uma viagem ao
paraíso recém criado; aqui mesmo, neste planeta, nesta dimensão.
Foi uma noite que demorou como uma
eternidade, esquecidos dos livros, dos tratos, dos compromissos, das dívidas,
dos afazeres no comércio. Depois de tantas aventuras, do conhecimento de
mulheres maduras, experientes, sensuais, aquela definitivamente parecia a sua
primeira vez.
Era sexo, sim. Como fora com outras,
mas também tinha outra dimensão, um componente diferente, desconhecido, que lhe
permitia sentir um prazer maior, sem culpas, capaz de o deixar totalmente
satisfeito.
A companheira, que numa sintonia
perfeita parecia estar vivendo a mesma situação, resumiu o momento numa frase
curta, despida de reflexões ou influências literárias.
- Não sabia que você era tão gostoso -
disse, com a maior simplicidade e naturalidade do mundo, como se estivesse
elogiando as suas roupas ou sapatos novos.
Depois tiveram outros momentos, alguns
nem foram tão belos e intensos como aquele primeiro. Outros, contudo,
multiplicaram o desejo, a chama, o sentimento. Profundamente envolvidos,
apaixonados, um pertencendo ao outro.
Durante meses aproveitaram todo
instante fora do trabalho para sair, conhecer restaurantes, frequentar bares,
visitar praias, passear nas praças e sobretudo amar-se em leitos diversos,
aconchegantes e macios.
Isso até que sentiu a cabeça girar
demais, alimentando remorsos, inquietações, como se tivesse pegado o caminho
errado. Parecia que ia pirar. Aquela embriaguez poderia dominá-lo o
resto da vida, prejudicar sua carreira profissional, seus planos, sua
convivência social. Era preciso pôr um fim no romance, nem que tivesse de
ir embora.
E foi assim que fez. Vendendo o carro,
os poucos trecos que tinha, doando os livros, os discos, entregando a casa,
indo se despedir do pai, da mãe, dos irmãos e dela também. Convencido de que
estava fazendo o mais sensato, tomando uma decisão positiva, facilmente
entendida por todos, inclusive por ela, que não dissera muita coisa, como
sempre; não protestara, apenas de despedira, com expressão de tristeza.
Passaram-se anos ali, na dureza da
cidade grande. Vendeu bugigangas no centro de São Paulo, entregou
mercadorias nas favelas, montou um bar, ganhou dinheiro, perdeu tudo depois de
um daqueles planos mirabolantes do governo, correu dos credores para Brasília,
depois Goiânia.
Até garimpeiro foi, por uns
tempos.
Voltou à Pauliceia e recomeçou, montou
uma fábrica de fundo de quintal. Comprou um carro novo, uma casa, deu a volta
por cima. O choro do primeiro dia, admitindo pela primeira vez que a amava, foi
ficando pra trás. Os telefonemas, o ciúme, gestos e sentimentos foram encaixotados,
permanecendo guardados por um longo período.
Mas Riobaldo sabia, lá dentro dele, que
não conseguia esquecê-la. Saía com uma, com outra, casou, separou, arranjou uma
amante e o coração, burro e teimoso, insistindo, piegas, transportando-o para
mais de dois mil quilômetros de distância.
Lutou contra aquilo, como fizera antes,
não queria fraquejar, agir como um tolo romântico, um imbecil. A vida era a
vida, diferente das músicas cafonas que infestam as rádios e dos amores
impossíveis da TV. Procurava ser racional, lógico, frio, no entanto
as decepções com as namoradas, o desejo insatisfeito, as frustrações no
trabalho, uma certa infelicidade latente, em meio a uma série de conquistas
profissionais, o remetiam ao paraíso do passado.
Um dia resolveu parar de lutar e foi
tomado pelo desejo de vê-la. Precisava desesperadamente dos seus olhos, do seu
silêncio, de sua calma, do seu corpo pequeno, de suas frases inocentes, quase
infantis.
Tratou de preparar as coisas, acertar
as pendências para fazer a viagem, a ansiedade mexendo com os seus nervos. Os
amigos estranhando, dando conselhos, sem saber o que ia no coração do
pernambucano, uma vez que ele nunca tinha feito muitas revelações do seu tempo
lá no Nordeste.
Agora, que estava resolvido, contava os
dias, as horas, sem se importar com mais nada. Somente pensava em atravessar os
céus, pisar no chão do aeroporto, percorrer os 300 km de carro. Alugar um táxi,
descobrir o sítio em que ela estava.
Sem nenhum contato, nos últimos anos,
nem sabia se tinha casado, se tivera filhos ou mesmo se estava viva, pois
também se morre jovem.
Pensava irracionalmente, tinha certeza
mesmo que estava solteira, solitária, esperando-o, como se o tempo não tivesse
passado. E seria bom vê-la, somente vê-la, mesmo que depois voltasse,
esquecendo para sempre aquela aventura irresponsável, segundo admitia em
momentos de fingida lucidez.
Então chegou o dia, o avião levantou
voo e Riobaldo viu São Paulo sumindo, ficando distante, se apequenando, sem
congestionamento e poluição. Procurou ler os jornais disponíveis a bordo,
tomou vinho, uma dose de uísque, comeu pouca coisa da comida horrível que
serviram, detestou os sobressaltos provocados pela aeronave, sacudida por
ventos. Respirou aliviado quando pisou em terra firme, perto dos simples
mortais que só andam de ônibus.
Numa locadora de automóveis, alugou um
carro e pegou o caminho de Pernambuco, passando por terras dominadas pela
cultura da cana de açúcar, o verde já diferente do observado no interior de São
Paulo. Com pouco mais, o semiárido, gado pastando, homens e mulheres pela
estrada, gente na roça.
Cruzou por cidadezinhas parecidas,
vilas, acampamentos dos sem terra, a bandeira do MST tremulando aqui e ali.
Parou para uma refeição ligeira, duas horas e meia depois, ganhando ânimo para
a última etapa da viagem. Agora estava perto, em menos de uma hora
chegaria a seu destino, iria revê-la.
Com pouco, passou pela cidadezinha, que
à primeira vista não mudara nada. Casas simples, calçamento irregular, carro de
boi ainda circulando pela rua, olhos curiosos no carro do forasteiro, a igreja
dominando a praça. Um ar de tristeza dando o tom ao cenário, a vida das pessoas
parecendo muito besta, como no poema de Drummond.
Pegou a estrada de terra, disposto a
vencer logo os 10 ou 12 quilômetros restantes. Dentro de poucos minutos entrava
no sítio, o mato dominando a entrada, o coração ajudando-o a acertar o
caminho.
Encostou o carro na frente da casinha
do Sítio Cajazeiras, da lá saiu dona Nesside, o rosto tostado de sol, o vestido
preto, um luto de 20 anos, lenço na cabeça, uma expressão de quem deseja
perguntar: "O que o senhor está fazendo aqui"?.
Riobaldo não deu tempo da velha senhora
falar, perguntou logo por Aline, queria vê-la.
- Está no barreiro, lavando roupa -
informou dona Nesside, apontando o caminho do reservatório d´água.
Tomou o caminho do barreiro, que ficava
perto, em dois minutos estava lá, na frente dela, olhando-a com intensidade,
admirado, parecendo não acreditar que a via; os mesmos olhos, ainda mais
bonitos, os cabelos mal cuidados, uma roupa simples, a pele queimada do sol,
parecendo ter terra nas mãos, nos braços e nas pernas. As coxas grossas,
firmes, o tempo não a maltratara, permanecia bela e, assim como a encontrara,
tão rústica, natural, parecia ainda mais atraente.
- Você!!? - foi a reação dela como se
mesclasse sentimentos de incredulidade, revolta e felicidade.
- Sim - foi tudo que conseguiu dizer,
naquele primeiro momento. Depois, sentindo que precisava acrescentar alguma
coisa mais, após tanto tempo, perguntou como ela estava, como estava a vida
naquele lugar.
- Péssima - reagiu - como se o culpasse
por tudo.
Após essa palavra dura, levantou-se,
pois se encontrava agachada, lavando uns panos, e os dois, sem palavras, se
dirigiram à casa onde a mãe e as irmãs os esperavam, curiosos. A sala era
no tijolo, nenhum compartimento da casa havia sido revestido de cimento, nas
paredes fotos da família e retratos de santos, São Jorge no cavalo branco, o
padre Cícero, Frei Damião.
Sentaram num bancos duros, o sítio não
tinha energia elétrica. O rádio e a televisão eram luxos distantes. Uma mesa
antiga, de madeira tosca, sem toalha, quase enchia a sala. Quatro ou seis
tamboretes ao redor. Perguntou a dona Nesside pela saúde, ouviu
a senhora falar que estava tudo bem, graças a Deus.
a senhora falar que estava tudo bem, graças a Deus.
Apesar do diálogo sem graça, da pobreza
- do absurdo daquela situação, pessoas viverem assim no início do século XXI -
Riobaldo sentia uma felicidade leve percorrer-lhe o corpo, por estar perto
dela, sentindo seu cheiro, admirando seu jeito tímido e selvagem.
Ficou uns instantes a sós com a mãe de
Aline, que sumiu para o terreiro; imaginou, até, que retornara ao barreiro,
todavia não demorou muito, retornando à casa com um pacote nas mãos.
Quando voltou a falar, foi para dizer,
enigmática:
- Isso aqui é para você.
Ficou sem entender, pegou o embrulho,
descobriu que eram feijões verdes; tentou recusar, educadamente, não via muito
sentido sair dali levando aquele pequeno embrulho de feijão.
Os olhos dela quase cuspiram fogo com a
recusa, nem tentou disfarçar a raiva, como se ele estivesse cometendo a maior
grosseria. E logo, estudando melhor a sua reação, percebeu que estava sendo
grosseiro mesmo, aquele era o presente de Aline, o único que ela podia lhe dar,
uma prova de que continuava a amá-lo.
- Você não se casou...? - ensaiou
perguntar, como se estivesse com medo.
- Não, vivo só. Eu e minha filha -
disse, sem considerar a mãe e irmãs.
- Filha!!! - parece que uma estaca fora
enfiada no coração de Riobaldo.
Informou, como se fosse a coisa mais
natural do mundo, que tivera uma filha dele. Quando partira a deixara grávida.
A menina nascera ali, no mato, sem médicos nem parteira. Estava crescida, já ia
á escola, preenchia a sua vida sem diversão e sem namorados.
Quis saber porque nunca havia lhe
comunicado sobre a menina, por que a estava criando sozinha, com sacrifícios.
- Ora, você tem sua vida lá, não tinha
porque aborrecê-lo - explicou secamente, perguntando, um tanto ansiosa, se ele
queria conhecer Vânia, a filha.
- Claro que quero - disse, meio
irritado, com aquele jeito de ela se expressar. Será que julgava ele um
monstro, indiferente à própria filha, que agora sabia existir?
- Hoje não vai dar, porque ela está na
casa de madrinha, só vem amanhã. Se quiser passe aqui, poderá conhecê-la.
Riobaldo entendeu que teriam muito o
que conversar, ele e Aline. Apenas não poderia ser naquele momento, com dona
Nesside e os outros da casa por perto. Voltaria, conheceria Vânia e sairiam de
carro, procurariam um lugar para ficar sozinhos e dizer tudo que tinha para ser
dito.
Levantou-se e despediu-se de dona
Nesside, sendo acompanhado pela filha da camponesa até o automóvel.
"Amanhã eu venho", anunciou, olhando-a com um misto de carinho e
admiração. Ela parece ter entendido, demonstrou satisfação e entregou novamente
a ele o pequeno pacote de feijões verdes, os olhos brilhando de uma felicidade
meio que escondida.
Ao sair do carro, deixando para trás aquela
casa perdida no meio do mato, no Sítio Cajazeira, não demorou a entender os
sentimentos daquela mulher. Ela estava feliz com a sua volta. Guardara-se para
ele, esperara anos, indiferente aos conselhos da mãe e das irmãs pedindo que o
esquecesse.
Paradoxalmente, a filha que nascera do
relacionamento deles não era o principal naquele momento. O que importava era
sua volta, a certeza de que ele correspondia aos seus sentimentos. Não pôde
mostrar Vânia, que estava ausente, não pôde beijá-lo, pois não ia mostrar-se
oferecida, ainda mais na frente da mãe. Daí a importância de colher aqueles
feijões, frescos, naturais como os sentimentos que nutria por aquele
homem.
Com uma mão na direção, passou a outra
no pacote de feijões, arrancados há pouco. Era como se eles falassem, mais do
que os embrulhos elegantes feitos nos shoppings de São Paulo, mais do que os
perfumes, aparelhos de som e camisas recebidos dos amigos e namoradas dos
tempos vividos na Pauliceia.
Aqueles feijões, poucos, mal
acomodados, prontos para a panela no dia seguinte, eram a prova de que não
estava errado. De que tinha de vir para revê-la, para sentir que aquele amor
não fora mentira nem ilusão, para dar e receber tudo que ficara guardado tantos
anos.
A saída da sala, o ato de arrancar o feijão,
talvez plantado por ela mesma, a entrega do saquinho plástico com o produto era
apenas um gesto. Um sinal de que queria agradá-lo, dizer que era bem-vindo.
Riobaldo se repetia e estava contente
consigo mesmo. Nem pensava mais em Vânia, somente no outro dia o preocuparia o
fato de ter uma filha. Agora, estava feliz simplesmente pelo presente que lhe
fora dado por Aline.
Parabéns senhor Roberto pelo conto do presente de Aline,
ResponderExcluirGostei, muito bom.
Obrigado Cláudio.
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