O que está no ar é briga de cachorro grande. E,
como se diz, tudo pode acontecer, inclusive nada.
Nessa colisão estrepitosa
entre a Rede Globo e o Sr. Jair Bolsonaro, por conta do vazamento do inquérito
sobre a morte da vereadora Marielle Franco em que o nome do chefe do governo
foi pela primeira vez citado claramente, eu gostaria como jornalista de fazer
um veemente discurso em defesa da liberdade de expressão. Infelizmente, não é
este o caso, por tudo que se pode depreender dos fatos atuais e seus antecedentes.
Desde a famosa nota de Leonel
Brizola esculachando a Rede Globo, lida em rede nacional no dia 15 de março de
1994 por decisão da Justiça pelo locutor Cid Moreira, nunca antes neste país a
poderosa Vênus Platinada fez um papel tão feio, tão patético e deprimente como
no Jornal Nacional na noite desta quarta-feira, 30/10/2019 (ponho a data assim
completa pra facilitar a vida dos pesquisadores no futuro).
Falo, claro, da marcha a ré
nas notícias sobre o depoimento do porteiro do condomínio de luxo onde moram
“seu Jair” e os autores do assassinato da ativista negra e do motorista
Anderson Gomes, no dia 14 de março de 2018. Até as pedras sabem do envolvimento
da família Bolsonaro com os milicianos no Rio de Janeiro. E o que foi divulgado
das investigações aponta as milícias como responsáveis pelo crime. Pela
primeira vez, a Globo mencionou o nome Bolsonaro ligando-o ao de Marielle. Viva
a liberdade imprensa! Viva? Vamos examinar melhor o acontecimento.
Relembrando: no dia 23 de
novembro de 2018 (oito meses após o atentado que vitimou a vereadora do Psol),
o então ministro da Segurança Pública (governo Temer) Raul Jungmann afirmou
publicamente ter certeza de que políticos poderosos, agentes públicos e
milicianos estavam envolvidos na morte da política carioca e que havia um
complô de autoridades públicas para impedir a elucidação dos fatos. Partindo da
mais alta autoridade nacional em segurança, a declaração era estarrecedora.[1] Toda
a mídia registrou o gravíssimo fato com notável discrição e tratou de
esquecê-lo. Houvesse imprensa atualmente no Brasil e um batalhão de repórteres
investigativos teria caído em campo para apurar quem eram “esses políticos
poderosos” e as “autoridades públicas” agindo em complô para sabotar o
inquérito policial.
Mas a grande mídia nacional,
desde o início desta década, abandonou por completo quaisquer veleidades
jornalísticas para atuar como partidos políticos, obcecada em derrubar a débil
democracia social de esquerda vigente e transformar nossa pobre pátria num
laboratório de experiências radicais do neoliberalismo. Assim, aliou-se, sem
qualquer prurido crítico, à operação política conhecida como Lava Jato
(chefiada por um juiz treinado pelo Departamento de Estado americano) e a um
Congresso em boa parte corrupto na cruzada moralista hipócrita contra a
corrupção. Nesse processo, a imprensa fechou os olhos às flagrantes
ilegalidades cometidas por Sérgio Moro, que pôde cometê-las justamente pela
popularidade parida pelo apoio da mesma mídia e que intimidou o próprio STF
(além do Exército, pela voz do general Vilas Boas).
O resultado foi a destituição
da presidente da República sob pretexto irrelevante, a prisão sem provas concretas
do principal líder popular do país, o desmantelamento dos sindicatos, a
supressão de direitos trabalhistas e previdenciários e o começo da entrega das
riquezas nacionais, especialmente o pré-sal, a petrolíferas estrangeiras.
Como antes da eleição Lula da
Silva continuava um candidato competitivo – apesar do massacre midiático diário
–, o bombardeio aumentou de escala até um resultado de terra arrasada, cujo
efeito colateral foi atingir violentamente as instituições, abrindo caminho
para o surgimento de um Messias de ultradireita que, para ser consagrado, fez
um pacto com a elite dominante, tendo como fiador o economista neoliberal Paulo
Guedes. Tudo sob as bênçãos do mercado.
Isso tudo é História e só
relembro aqui para juntar algumas pontas e mostrar como, no caso da Rede Globo
(principal ponta de lança da operação anti-PT, anti-Lula e antiesquerda em
geral), o feitiço virou contra o feiticeiro. O capitão que dá ordens a
generais, sabendo claramente que o candidato da Globo era Geraldo Alckmin,
desde a campanha aliou-se às redes SBT e Record e partiu para o confronto com a
família Marinho. Contou com assessoria internacional para usar a artilharia
pesada das redes sociais e agora, na resposta à denúncia sem apuração da Globo,
posou de vítima, fez as ameaças costumeiras e interpretou um cidadão indignado
com direito a um sonoro, límpido e rotundo “porra!” Isso só está sendo possível
graças a inúmeros fatores, como a perda de poder dos meios convencionais de
comunicação para o campo desgovernado da internet, fenômeno mundial que está
apenas começando.
Desorientada sobre como
enfrentar as novas tecnologias da informação e tendo escancarado sua atuação
política de forma inédita, a mídia não pratica mais jornalismo no Brasil, com
uma ou outra exceção, em casos pontuais. Transformou-se num roçado onde são
plantados factoides, meia-verdades e mentiras em estado bruto. Terreiro onde
correntes da elite se entrincheiram (como sempre) para atacar seus adversários.
Moleque de recado dos poderosos. Solo onde a manipulação produz frutos
teratológicos.
A Rede Globo está colhendo o
que plantou. Facilitou, com sua militância e facciosismo, o enfraquecimento das
instituições democráticas (alguma novidade?) e agora baixa a crista para as
sinistras forças da extrema-direita que ajudou a sair das trevas para atuar na
claridade do planalto central brasileiro.
O público, por suposto, não
sabe o que está rolando à vera nos subterrâneos dos altos escalões com relação
à morte de Marielle. A Globo fez o jogo de alguma ala dos podres poderes e
recebeu como troco a ameaça de cassação de sua licença por parte do eterno
candidato a ditador. Foi uma chantagem, uma ameaça explícita sem qualquer
pudor. Feito uma cadela espancada, a outrora poderosa emissora carioca enfiou o
rabo entre as pernas. E os fâmulos da família Marinho vocalizaram uma defesa
bisonha e vexatória. Tudo que está rolando por aí não é notícia, é jogo de
interesses encobertos. O rolo já botou na dança o STF, a Procuradoria Geral da
República, o Ministério da Justiça, a PF, a família Bolsonaro, o improvável
governador do Rio de Janeiro Wilson Witzel, as promotoras do caso, uma delas
bolsonarista de carteirinha, o diabo a quatro. Em seu vídeo exaltado, Bolsonaro
contou ter sabido (há mais de 20 dias!) do depoimento do porteiro pelo próprio
governador fluminense, pretenso candidato a presidente em 2022 e interessado em
destruir sua (dele, Bolsonaro) imagem pública. É briga de cachorro grande. E,
como se diz, tudo pode acontecer, inclusive nada.
Nesse imbróglio todo,
não me sai da cabeça a situação do porteiro do condomínio de luxo na Barra da
Tijuca, até o momento mantido no anonimato (algo muito perigoso, nessas
situações). É inimaginável a pressão que esse cidadão está sofrendo,
conhecendo-se o poder de intimidação e a truculência de muitos dos atores desse
drama político. Na briga do rochedo com o mar, ele está no papel do marisco
anônimo, pobre e lascado.
[1] UOL
— https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2018/11/23/marielle-politicos-poderosos-jungmann-investigacao.htm?cmpid
*Homero
Fonseca é jornalista, escritor e consultor literário. Foi editor da revista
Continente. Autor do romance "Roliúde", entre outros livros.
Mariele morreu por que era envolvida com traficantes e quem se envolve com bandidos acaba com a boca cheia de formiga. Porém dada as ideias defendidas por essa senhora, dentre outras a deturpação dos valores da sociedade,e a exaltação de criminosos, ela é mais útil adubando a terra!
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