Garanhuns é uma
pacata cidade do interior de Pernambuco, de clima temperado e figuras ilustres,
tais como o grande mestre Dominguinhos e Luís Inácio Lula da Silva. Ou quase
isso, pois o barba nasceu mesmo em Caetés. Mas, por questões históricas e
disputas territoriais, o mito segue valendo. Na falta de outro melhor, sigamos
com ele.
É provável que para
o brasileiro do sul tais fatores sejam suficientes para trazer a tona o
imaginário Bacurau. Garanhuns-resistência. Garanhuns cultura popular. Garanhuns
"a esperança venceu o medo". Entretanto, não poderia haver distância
maior entre essa fantasia e a imagem que a cidade oficial adota: Garanhuns é a
Suíça Pernambucana, que ao olhar para o espelho enxerga não a si própria, mas
um paraíso de fondues, bonecos de neve e catolicismo old school. A imagem com
que a cidade oficial se apresenta para um mundo que não a vê (o mundo,
portanto, é o próprio umbigo de sua elite cafona) é muito mais próxima do prefeito
Tony Jr. do que de Lunga - que seria imediatamente entregue para as autoridades
competentes caso viesse a se apresentar no Festival de Inverno. Caso o Nordeste
se tornasse independente, como diz o poeta, a Garanhuns oficial pediria para
tornar-se um departamento do território do Sul, se possível construindo muros.
Obviamente, não teria sucesso, e seu destino seria muito parecido com o dos
motoqueiros sudestinos em Bacurau.
Contudo, a
Garanhuns oficial não é toda sua história. Longe disso. Em suas frestas
sobrevive a Garanhuns real, a anti-garanhuns, território indígena e quilombola,
que a cidade oficial rejeita desde seu nascimento. Essa sim, se aproxima muito
mais de Bacurau, ainda que com sistemas de valores mais autênticos e
complexos.
Tem algum tempo,
parte dessa Garanhuns real passou a ocupar a praça Guadalajara, a principal da
cidade (um espaço enorme, público, mas de circulação restrita e por vezes
privatizada), promovendo a nível local um evento cultural que tem mobilizado
boa parte das periferias do Brasil: a batalha do passinho, talvez o fenômeno
cultural mais relevante hoje, no país. Evento periférico, altamente complexo e
criativo e, sobretudo, vivo - o exato oposto do orelhão de boneco de neve que
"adorna" os arredores da praça. Cabe dizer que antes de ocupar a
praça os moleques bem que tentaram colar nos parques, espaços bem mais
interessantes e agradáveis. Mas rapidamente os herdeiros de Domingos Jorge
Velho proibiram caixas de som, forçando os moleques a procurar outro lugar.
Pois como é sobretudo de arte que se trata, sem som o evento não pode
acontecer.
Tem alguns dias, a
polícia acabou de vez com o evento, para tranquilidade (e gozo) dos moradores.
A justificativa é a mesma ladainha sem criatividade de sempre: os adolescentes
estavam se encontrando não para dançar e festejar, mas para beber e usar
entorpecentes - leia-se maconha, a terrível erva do diabo destruidora da
família brasileira. Ou seja, exatamente a mesma coisa que os jovens da
Garanhuns oficial fazem, só que de forma mais branca, seja na cor dos
frequentadores, seja na cor do entorpecente (inclusive, vai rolar um festival
de cerveja artesanal a oitenta reais por esses dias) sem ser incomodada. Terão
acertado na cor? No caso do passinho, que escolheu a cor errada, o objetivo não
é oferecer alternativas culturais e organizar o espaço para uso dos seus
cidadãos, mas promover a exclusão permanente desses sujeitos, mantendo a praça
a níveis saudáveis de clareamento. A solução lógica é, pois, acabar de vez com
o passinho. Perpetua-se assim a tradição de extermínio simbólico que é um
excelente paliativo até que o extermínio real - verdadeiro objetivo - possa vir
a acontecer. O que tarda, mas não falha.
O "Brasil do Sul" de Bacurau não é um
território, mas um estado de espírito, bem mais próximo do que gostaríamos de
imaginar. Inclusive, pode estar encravado no meio do agreste pernambucano.
Afinal, Nordeste é uma ficção. Nordeste nunca houve.
* Acauam Oliveira é professor da UPE/Campus Garanhuns)
**Foto: Cena do premiado filme "Bacurau", do cineasta pernambucano Kléber Mendonça Filho.
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