Por Dantas Suassuna
Perplexo
e angustiado com a situação política em que nosso país se encontra, em uma
entrevista concedida ao jornalista William Costa, por conta do lançamento do
Teatro Completo de meu Pai, Ariano
Suassuna, pela Editora Nova Fronteira, me vi envolvido com um profundo e
inquietante questionamento: como entender o Brasil, principalmente com os
problemas que apresenta hoje, sem a presença de meu Pai, que a vida inteira
sonhou - e lutou - por uma nação independente, regida pela liberdade com
justiça social?
Nessa
perspectiva, e diante da eleição para Presidente da República, como refletir
sobre essa polarização, essa divisão ideológica, toda uma tensão e conflitos
criados no ambiente familiar e entre amigos, e radicalizados na rua, com
agressões e assassinatos, levando-se em consideração uma campanha eleitoral,
principalmente realizada pelos seguidores da extrema direita, baseada no
discurso do ódio e nas notícias falsas? Não podemos nos esquecer dos
assassinatos recentes da vereadora Marielle Franco e do mestre de capoeira Moa
do Katendê, vítimas da repressão autoritária e violenta contra a liberdade de
expressão e a atuação política em prol dos menos favorecidos.
Então,
lembro-me que meu Pai costumava refletir o Brasil a partir do episódio de
Canudos. Ele dizia que, em Canudos, o povo explorado do Brasil “real e mais
escuro” teve a coragem de levantar a cabeça para conduzir as rédeas de seu
destino, mas a “justiça” dos poderosos, a elite do Brasil “oficial e mais
claro”, foi lá e cortou essa cabeça. E meu Pai dizia que os acontecimentos de
Canudos continuavam a se repetir cotidianamente no Brasil, em “todos os
lugares, em todos os campos de atividade”.
No
artigo “Nós, Canudos e o mundo”, ele observa que sempre que uma milícia de
poderosos, governamental ou não, assassina um pobre posseiro e sua família, e o
patrão explora o empregado, temos a representação do Brasil oficial massacrando
e humilhando o Brasil real. E a mais emblemática representação do episódio de
Canudos ocorre no momento em que a polícia invade uma favela, principalmente se
considerarmos a ironia do destino por trás desse ato arrogante, aterrador e
opressivo: é que muitos soldados do Exército, pertencentes ao Brasil real,
oriundos da cidade do Rio de Janeiro, ao retornarem da Guerra de Canudos
(1896-1897), são obrigados a construir seus casebres no Morro da Providência, e
se referem, então, ao novo local de moradia como sendo uma “favela”, numa clara
referência ao Morro da Favela, próximo ao Arraial de Canudos, uma região em que
a planta favela ou faveleira era predominante.
Hoje,
diante da possibilidade de termos policiais militares com “carta branca” para
matar, dentro das favelas, mesmo que seja por “engano”, penso então nos
equivocados do Brasil real, pertencentes a essas mesmas comunidades, que, por
sofrerem a violência cotidiana, principalmente associada ao narcotráfico, iludidos
pela crença de que terão acesso facilitado às armas, a partir de uma espécie de
programa governamental do tipo “minha arma, minha vida”, e também por intimação
de igrejas evangélicas, optam por um caminho político para o país que pode ser,
na triste acepção da palavra, um verdadeiro “tiro no pé”.
Porque
não podemos esquecer que, historicamente, a direita brasileira pouco se
comprometeu ou se comoveu com a situação do povo do Brasil real. Meu Pai dizia
que, no Brasil "quem é de esquerda, luta para manter a soberania nacional
e é socialista; quem é de direita, é entreguista e capitalista. Quem, na sua
visão do social, coloca a ênfase na justiça, é de esquerda. Quem a coloca na
eficácia e no lucro, é de direita.”
Mas
meu Pai também alertou, em seu artigo “Intelectuais e Forças Armadas”, para o
fato de que, “em sua maioria, os intelectuais brasileiros revelam a tendência a
estender injustamente a todos os militares a justa queixa que mantêm contra
alguns deles. Na medida do possível, tenho tentado combater, em mim, essa
tendência; e sempre que falo das Forças Armadas, procuro, por exemplo,
distinguir, nelas, a ala nacionalista da entreguista.” Ou seja, dentro das
Forças Armadas, historicamente vinculadas à ideologia de direita, sabemos que
existem militares comprometidos com a soberania nacional, e que, com certeza,
devem ficar indignados ao escutar a afirmação, por parte do candidato de
extrema direita, de que “a Amazônia não é nossa”. Por isso, meu Pai costumava
dizer que os intelectuais brasileiros deveriam se unir com o que resta de
nacional nas Forças Armadas e no empresariado brasileiro, para, numa genuína
Missão Patriótica, planejar e desenvolver ações que pudessem verdadeiramente
contribuir com a construção de um país mais justo, digno, solidário, igualitário,
compassivo, pacífico e harmonioso, em que a exploração do povo pobre do Brasil
real fosse erradicada.
Nesse
momento, levando-se em consideração todas as lições de meu Pai – um homem ético
que nunca dissociou seu discurso ideológico de suas práticas sociais, em função
de seu profundo comprometimento com seu Povo e seu País –, proponho uma
reflexão lúcida aos brasileiros, a mesma utilizada por ele em sua análise da
conjuntura histórica, política e cultural brasileira, a fim de não somente
encontrarmos o equilíbrio e a contemplação necessários para encarar a dura
realidade política e social do nosso país, mas também para nos posicionarmos em
defesa do Brasil.
Meu
Pai, em seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, disse que a
roupa e as alpercatas que usava em seu dia a dia eram apenas uma indicação do
seu desejo de identificar o seu trabalho de escritor com aquilo que Machado de
Assis chamava o Brasil real e que, para ele, era aquele que habitava as favelas
urbanas e os arraiais do campo. Grande admirador de Gandhi, meu Pai estava em
constante busca pela harmonia, pela paz; nesse aspecto, sabia que não se separa
o pensar do falar e do agir, pois sofre quem não tem coerência entre aquilo que
pensa, fala e faz.
Era um homem coerente em suas ações, pois suas bases
teóricas, éticas e morais sempre foram muito sedimentadas, bem alicerçadas por
uma educação familiar voltada para a escuta do outro, para o sofrimento dos
mais carentes e necessitados. Quando penso nessa atuação de meu Pai, como
artista e homem público, em prol da resolução dos conflitos de classe, das
desigualdades existentes e da soberania nacional, então o que esperar de um
país em que a campanha de um candidato de extrema direita que lidera as
intenções de voto é totalmente baseada na apologia da violência e em notícias
falsas sobre seu adversário? Se esse candidato vence as eleições, não estariam
os brasileiros oficializando o discurso do ódio e da mentira, e instituindo,
pelo voto, o retrocesso?
*Manuel Dantas Suassuna (foto), filho do Mestre Ariano, é artista plástico e publicou texto e foto inicialmente em seu Facebook.
Nenhum comentário:
Postar um comentário