CIDADE DE DEUS E O CINEMA NACIONAL
Nesta série, sobre alguns filmes inesquecíveis que já tivemos oportunidade de ver, a maioria deles sucesso de crítica e público e de qualidade artística inquestionável, inevitavelmente comentamos mais obras dos americanos. É que em Hollywood se formou a maior indústria cultural da sétima arte do planeta e praticamente desde as primeiras décadas do século XX que os Estados Unidos vêm produzindo filmes, formando atores e diretores que se tornaram ícones em todo o mundo ocidental. Apesar do conteúdo ideológico dos seus produtos, de um cinema de forte apelo comercial que funciona, muitas vezes, como mero entretenimento, a América também nos legou, ao longo dos anos, ótimos faroestes, dramas, aventuras, histórias de guerra, suspense, policiais e até grandes filmes políticos.
Pelo menos no Brasil, fortemente influenciado pela indústria cultural americana, fica difícil falar de cinema deixando de lado o que vem de Hollywood. Claro, se acompanhamos mesmo o que se tem feito em outros países no campo da sétima arte, não podemos desconhecer algumas obras primas dos italianos, franceses, alemães, espanhóis, argentinos e por aí vai.
E também, se queremos ser honestos e nacionalistas, de maneira nenhuma podemos ignorar o trabalho dos brasileiros, que apesar das parcas condições, dos boicotes interno e externo, têm desde os anos 50 presenteado os cinéfilos com grandes filmes, a exemplo de O Cangaceiro, O Pagador de Promessas, Vida Secas, Deus e o Diabo na Terra do Sol, São Bernardo, Pra Frente Brasil e muitos outros, alguns mais recentes.
Nos últimos anos, impulsionados principalmente pela Globo, diretores como Daniel Filho e Guel Arraes têm sido responsáveis por filmes que fogem um pouco à estética do cinema como um vigoroso instrumento de arte. São obras de qualidade, caso de Se Eu Fosse Você, O Auto da Compadecida e agora o Bem Amado, mas que estão distantes da produção do cinema novo; de Glauber Rocha, Nélson Pereira dos Santos, Cacá Diegues ou dos mais novos, caso de Fernando Meirelles e Walter Salles. Se faz um pouco (ou muito) de televisão no cinema (isso está presente também no filme sobre Francisco Xavier), gerando como conseqüência superficialidade e empobrecimento da obra cinematográfica.
Depois da retomada do cinema brasileiro, após o fim do Governo Collor, que praticamente destruiu a produção nacional, tivemos bons filmes no mercado. Obras capazes de agradar tanto o brasileiro quanto um público mais exigente do exterior. O Quatrilho, O Que É Isso Companheiro, Abril Despedaçado, Memórias de Cárcere, Carandiru e Central do Brasil são alguns títulos que podem ser lembrados assim, de primeira, sem precisar de um manual de consulta.
Na lista acima, a qual podem ser acrescentados outros tantos produtos artísticos de cineastas nacionais, temos diretores e atores envolvidos em trabalhos que merecem respeito, sem as limitações da visão televisiva ou o mero desejo de atender o mercado. Dessa produção dos anos 90 para cá, um dos melhores filmes, cultuado no Brasil e talvez mais ainda no exterior, é o excelente Cidade de Deus, um marco na filmografia de nosso país.
“Cidade de Deus” é um livro publicado em 1997, escrito por Paulo Lins, retratando a vida de uma comunidade pobre do Rio de Janeiro. Foi transformado em filme em 2002 pelo jovem cineasta Fernando Meirelles, que trabalhou inicialmente no campo da publicidade, e talvez por conta disso trouxe para o cinema uma linguagem extremamente ágil, com um sopro saudável de renovação.
Dos mais de 250 personagens do romance, Meirelles aproveitou o mais importante, fazendo uma adaptação que agradou o autor do livro, a crítica e o público brasileiro. Seu filme foi aclamado por onde passou, recebendo inúmeros prêmios no exterior. Foi uma das sensações, inclusive, do prestigiado Festival de Cannes, que acontece todos os anos na França. Foi indicado ao Oscar, porém não levou. Só que isso pode ter acontecido não por falta de qualidade e sim porque enfrentou concorrentes de peso ou mesmo porque a Academia conservadora de Hoolywood não quis premiar um trabalho revolucionário e perturbador, escancarando não o país do carnaval, do samba e futebol e sim um Brasil aparentemente invisível, injusto, capaz de gerar uma situação de violência chocante, atingindo de igual maneira crianças e adultos.
O filme de Meirelles, como o livro de Paulo Lins, narra a história da Cidade de Deus, uma comunidade carioca criada a partir de um programa habitacional para reduzir o número de favelas no Rio de Janeiro. Distante do centro, pobre, o lugar termina por se transformar numa fábrica de delinqüentes. Desde muito pequeninos os moradores da localidade convivem com a violência e o crime. No subúrbio carioca não há outra opção: a meninada inicia a vida com pequenos roubos e quando chega à adolescência já está no crime organizado, participando de grupos que lidam com o tráfico de drogas.
O filme é extremamente realista e tem personagens, que embora do mal, são inesquecíveis: é o caso de Zé Pequeno, quando adulto chefe de uma das gangs de Cidade de Deus, capaz de se impor na comunidade através da força e da crueldade.
Toda a história é narrada através de Buscapé, um jovem negro da comunidade que também poderia ter virado um bandido, mas tem uma oportunidade de trabalhar como fotógrafo na cidade e termina sendo o “expectador” privilegiado da guerra pelas drogas na periferia da segunda maior cidade do Brasil.
“Cidade de Deus” tem muitas cenas antológicas, como uma, acredito logo no começo do filme, em que os personagens perseguem uma galinha. Também muito forte outra em que uma criança com uma arma quase do seu tamanho é incentivado a matar o “coleguinha”.
A direção do filme é competente, inovadora, a linguagem é moderna, a fotografia eficiente e os atores – a maioria amadores, da própria comunidade – são muito convincentes em seus papéis. “Cidade de Deus” termina sendo um retrato do Brasil que está escondido “debaixo do tapete”, ignorado pelas classes média e alta, mas que frequentemente explode nas manchetes dos jornais.
Devem existir várias comunidades semelhantes nas grandes cidades, gerando muitos semelhantes ao Zé Pequeno, ao goleiro Bruno e a outros monstros da vida real ou da ficção.
Um grande filme, que entra para a galeria dos inesquecíveis.
(Na foto que ilustra a matéria, o personagem Zé Pequeno, interpretado pelo ator Leandro Firmino da Hora).
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