Carta de Fernanda Torres a Fernanda Montenegro:
São Paulo, outubro de 2021
Minha mãe,
no dia 16 você completa 92 anos.
O seu pai, seu Vitorino, quando chegou à sua idade, deu de apostar uma
corrida contra o tempo. “Vou aos cem!”, ele dizia, já surdo, batucando uma
música imaginária com os dedos, que era incapaz de escutar.
A paralisia infantil o deixou manco de uma perna, mas ele inventou um
jeito próprio de caminhar, acompanhado de um larí, larí... que transformava a
passada coxa num trejeito de Chaplin.
Vitorino tinha certeza de que morreria aos 33 anos, idade em que Cristo
foi posto na cruz. Não morreu, e eu pude conviver com a sensibilidade de
artesão, que você tem dele, com as bochechas que todas nós herdamos e com a
delicadeza que nenhuma das mulheres da família tem.
Fernando Torres também era um homem doce. Torturado e doce. Bebia, mas
nunca nos ofendeu ou te impediu de ser quem era.
Já o burocrata que te chamou de sórdida, ex-cocainômano que agredia
mulher e filho, e diz ter sido curado de um tumor pela graça divina, já esse,
pode bem ter se livrado do mal físico. Mas faltou, ao Deus que ele cultua, dar
cabo da agressividade e da misoginia do cordeiro grosso.
Estranhos homens esses, que batem e xingam em nome de Deus.
Quando você completou 70 anos, me disse que havia cumprido o ciclo
furioso de peças, novelas e filmes. Não havia nada mais a esperar da vida.
Quatro meses depois, foi indicada ao Oscar de melhor atriz, por “Central do
Brasil”.
Trabalhar sempre foi a sua sina. Sua alegria, sua mania, seu destino e
sua sina.
Agora, com a autobiografia, o que seria um ponto final tornou-se farol,
uma luz de integridade em meio ao obscurantismo carola dos adoradores de fuzis.
Eu cresci te vendo beijar outros homens em cena como beijava o meu pai.
Isso nunca corrompeu a solidez da nossa família. Mas o prefeito do Rio de
Janeiro, tão beato quanto ausente, mandou recolher, na Bienal do Livro, os
exemplares de uma história em quadrinhos com um beijo gay.
Num país que mata crianças e nega educação, saúde e saneamento às
famílias dessas crianças, tratar um beijo como ameaça é sinal não só de
oportunismo político, como também de pequenez moral.
O episódio inspirou sua foto de bruxa diante da fogueira de livros.
Sórdida, exclamou o burocrata convertido. A injúria, no entanto, detonou uma
onda de respeito e admiração à sua figura. Resposta outra, que não a agressão
no mesmo nível, sempre baixo. A solidariedade como antídoto para inocular os
Savonarolas.
Teu livro é o testemunho de uma autodidata, neta de imigrantes e filha
de um operário com uma dona de casa que, por meio da prática obstinada de um
ofício, sobreviveu aos inúmeros reveses sociais e políticos que, volta e meia e
sempre, acometem o Brasil.
A morte de Getúlio, a renúncia de Jânio, o AI-5, a campanha frustrada
das Diretas-Já, o confisco de Collor, a coalizão corrompida da
social-democracia e a ascensão da teocracia armada, os tombos e levantes que
nos condenam a começar do zero “ad aeternum”, filtrados pelos olhos de uma
Sísifo mambembe.
Quem sabe, quando eu fizer 70 e você passar dos cem, teremos vencido o
horror de agora? Horror que promete deixar o legado de um país sem Rádio MEC,
sem TBC ou Oficina, sem cinema novo nem velho, sem MPB e rock, sem Arena e sem
Asdrúbal, sem Dulcina, Bibi, Dercy e Cacilda, sem Antunes e Nelson.
Terra arrasada. Esse é o horizonte. Sigamos.
O partidarismo, à esquerda e à direita, nunca foi o seu norte. Avessa a
dogmatismos, você fez do drama existencial da comédia humana a sua matéria.
Penso que foi isso o que te fez uma mulher do presente, não importa a época.
Comemoraremos os seus 92 com uma missa no lugar em que celebramos, todos
os anos, a partida do papai. Apesar da profunda devoção cristã, você jamais nos
impôs a sua fé. Você jamais nos impôs crença, diploma, sucesso, nada. Você
ensinou os seus filhos a serem, na medida do possível, livres.
Nas suas memórias, você narra o último delírio teatral do Fernando, com
ele já doente, querendo ensaiar a peça “É...”, de Millôr Fernandes. Na mesa da
sala de jantar, você se dispõe a ler com ele, até que meu pai se cala, ao
perceber que não há elenco presente.
A cena é puro Beckett e lembra o final de “Seria Cômico se Não Fosse
Sério”, em que você, Alice, cuidava dele, do marido, Edgar, vítima de um
derrame. Vida e arte sempre se confundiram na nossa casa.
Chorei muito com o seu relato. Espanta, nele, a lucidez afiada de uma
mulher de quase um século.
Feliz aniversário, minha mãe. Que o Brasil, tão trágico, bruto e
desesperado entenda, com gente como você, o quanto a arte e a criação podem
fomentar amor, progresso e civilização.
Evoé, novos artistas.
*Foto: Estado de Minas
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