*Todos os dias, na oração da
manhã, me pergunto: resta-me humanidade? Como posso suportar, recluso em casa,
que lá fora morreram, por descaso do governo, mais de 400 mil pessoas no
Brasil? E mais de 14 milhões de infectados não sabem o futuro que os aguarda —
se a cura, se as sequelas, se a morte.*
*O que faz meu grito ficar
parado no ar, a gota d’água não entornar minha paciência, a esperança me fazer
acreditar que serei poupado do genocídio? Como fazer parar a máquina da morte?
Como dar um basta ao negacionismo que alimenta essa política necrófila que
vitimiza, indiscriminadamente, ricos e pobres, idosos e jovens, portadores de
comorbidades e saudáveis atletas?*
*Mais de 400 mil mortos! Não
ouço os sinos tocarem por eles. Vejo apenas múltiplas mãos encharcadas de
sangue se lavando, ponciopilatamente, na bacia do mais escancarado cinismo. A
dor de mais de 400 mil famílias não dói em mim. O que me resta de humanidade?*
*Na Guerra do Paraguai, o
Brasil perdeu 50 mil combatentes. Em pouco mais de um ano deixamos a pandemia
multiplicar esse número por oito. Por quê? Talvez por não presenciar o
desespero de quem bate em vão as portas dos hospitais desprovidos de leitos,
nem o indescritível sofrimento de quem, entubado e sem receber analgésicos,
conhece no corpo as infinitas dores das torturas medievais.*
*Na guerra do Afeganistão, ao
longo de 14 anos (2001-2015), 149 mil vidas foram perdidas. Aqui, em 14 meses,
esse número foi multiplicado por três. Como admitir tamanha mortandade? Por ter
como causa um vírus invisível?*
*Não, o vírus não age sem que
humanos o transmitam. O vírus é como a bomba atômica jogada sobre Hiroshima e
que ceifou 140 mil vidas. A bomba não viajou sozinha dos EUA ao Japão. Foi
conduzida por uma aeronave B-29. Cada um de nós é a aeronave que transporta o
vírus letal. Cada um de nós é potencialmente um míssil carregado de artefatos
nucleares. Basta abrir a boca e as narinas para detonar os projéteis que
haverão de semear a morte alheia.*
*Em 1912, o Titanic, navio
invencível, foi vencido por um iceberg. Morreram mais de 1.500 passageiros.
Aqui no Brasil já afundaram 266 Titanic e ainda há quem não enxergue a cor
rubra do mar!*
*As quedas das Torres Gêmeas
de Nova York soterraram 2.996 pessoas. O mundo parou, estupefato, frente à
tamanha atrocidade.*
*Até os dicionários
religiosos suprimiram a palavra perdão. No Brasil já desabaram 134 Torres
Gêmeas e ainda não foram apontados os responsáveis por esse terror.*
*Resta sim, humanidade, mas
preciso beber no poço aberto por Santo Agostinho, o da indignação, para
protestar, e o da justiça, para mudar esse estado de coisas.*
*(Dedicado a Paulo Gustavo.)*
*Frei BETTO é escritor e assessor de movimentos sociais, é autor de ‘Diário de quarentena’ (ed. Rocco), entre outros.
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