Por Carolina Acari
"Eu nasci num
berço privilegiado. Tive uma educação conservadora, fui evangelizada nos
preceitos do espiritismo, estudei nos melhores colégios particulares de
Curitiba e casei com um médico aos 19 anos. Fui bela, recatada e do lar. Votei
no Serra. Achava que o sistema de cotas era vitimismo.
Falava que era
feminina, jamais feminista. Repetia a máxima: não dê o peixe, ensine a pescar.
Já achei Bolsa Família uma máquina de produzir pobres preguiçosos. Já fiz piada
sobre nordestinos e baianos e já acreditei em "racismo
reverso".
Também já falei que
sucesso escolar dependia de escolhas e levantava a bandeira da meritocracia
como se ela fosse um mecanismo das leis da natureza, simples assim. Nos almoços
de família, sentia minhas teorias sobre a "grande mudança social"
validadas por pessoas que pensavam como eu. Os churrascos eram
agradabilíssimos.
Um belo dia,
aceitei uma proposta de trabalho, lá no interior de Goiás, para fundar e
administrar um projeto social que atendia crianças e adolescentes da periferia
de Rio Verde. Foi a primeira vez que aquelas teorias vociferadas no churras de
domingo foram postas à prova. Era o meu momento de mostrar pro mundo que, com
27 anos, eu sabia exatamente o que estava fazendo. Bom, eu não sabia. E como
não temos uma temporada da Netflix pra desenvolver esse post aqui, basta dizer:
MINHAS TEORIAS CAÍRAM POR TERRA.
Caíram por terra
quando um aluno recém chegado da Paraíba com uma vontade enorme de estudar era
obrigado a entregar drogas na vizinhança sob ameaça de que suas irmãs seriam
estupradas se ele não o fizesse - a polícia fazia parte do esquema - descobri
que esforço pessoal não era o problema desse garoto.
Caíram por terra
quando eu encaminhei alunos pra estágio de jovem aprendiz e, de um grupo de 4
adolescentes, somente o menino negro não conseguiu entrar, apesar de ter
competências muito semelhantes às dos colegas. Caíram por terra quando um aluno
(veja só, também negro) desapareceu pq foi trancado E ESQUECIDO numa sala de
aula como método corretivo por não ter copiado a tarefa de matemática. -
descobri que o racismo é um fenomeno estrutural e institucionalizado e que as
especificidades da população negra exigem políticas de ação afirmativa, como as
cotas, que tentam diminuir as desigualdades e restituir direitos negados há
seculos.
Caíram por terra
quando eu dei colo pra uma menina que só dormia em sala de aula e com péssimo
rendimento escolar porque ela fazia todo o trabalho doméstico para os homens da
casa, além de ser abusada sexualmente pelo avô todas as noites - descobri que a
violência contra meninas é uma questão de gênero e que o olhar feminista é
imprescindível para entender e enfrentar esse fenômeno.
Caíram por terra
quando eu soube que nenhuma das famílias atendidas havia parado de trabalhar
para receber 90 reais de Bolsa FAmília, mas que esse valor era muito importante
para complementar a renda no mês - descobri que as exigências educacionais e as
condicionalidades na área da saúde eram cumpridas pelas famílias - criança na
escola, vacinas em dia e acompanhamento do crescimento no posto de saúde.
Caíram por terra
quando fui no hospital visitar 2 alunos, irmãos, negros, atingidos por bala
perdida, um deles ficou paraplégico - descobri que jovens negros são
exterminados, EXTERMINADOS no Brasil.
Caíram por terra
quando minha aluna mais querida caiu nas garras da exploração sexual e passou a
cometer delitos, na tentativa de fugir dos abusos que sofria de todos os homens
da família dela.
Foram 10 anos de
Escola de ser. E foi lá que eu conheci um pouco do mundo como ele é. É muito
fácil defender uma visão política toda trabalhada na meritocracia e bem estar
individual quando você faz três refeições por dia, tem casa própria, um salário
razoável e uma boa perspectiva de futuro. Eu já estive nesse lugar e me sinto
profundamente constrangida por isso.
Não sou
especialista em Sociologia, Economia, Política e Direito, mas hoje meu
posicionamento político é baseado na minha experiência profissional e em todas
as leituras que dedico para entender o cenário político atual, de grandes e
renomados estudiosos, juristas, pensadores, assim como me interessa ouvir o que
as minorias constantemente atingidas pela desigualdade social têm pra falar e
reivindicar. Não me sinto a dona da verdade por isso, mas entendo que esse
esforço me aproxima de uma visão de mundo mais coerente, realista, responsável
e conectada com o coletivo.
O Brasil tem uma
história colonialista, escravocrata, conservadora, militarista que mostra uma
inclinação antiesquerdista predominante, da qual eu quero distância, nem que
isso custe os churrascos com amigos, uma vida mais solitária (porém mais
coerente) e xingamentos inbox.
E embora eu não
santifique Lula nem venere o PT, eu sou de esquerda. ESQUERDA. Nesse contexto,
desde o impeachment de Dilma à prisão de Lula, repudio todo o processo que
culminou num golpe que flerta com a ditadura, num despotismo judicial
concretizado numa condenação sem provas e na constante ameaça ao Estado
democrático de direito.
Eu reafirmo a minha posição: SOU DE ESQUERDA."
*Carolina Acari é escritora. Texto publicado originalmente na Revista Fórum
Eu reafirmo a minha posição: SOU DE ESQUERDA."
*Carolina Acari é escritora. Texto publicado originalmente na Revista Fórum
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