Dor e glória é um Almodóvar quase irreconhecível. Mas sempre Almodóvar. O novo filme do
diretor espanhol não contém extravagâncias. Nem cores berrantes. Nem mulheres
histéricas. Nem humor escrachado. Menos ainda viadagem explícita: há um beijo e
uma cena de nudez nada escandalosa.
Tudo nele é contido, sóbrio, elegante e bonito. Com uma pegada poética
verdadeiramente surpreendente.
Ora, direis: então não é Almodóvar.
Mas é. Porque, apesar de excluído o exagero, o vermelho predomina na paleta
de cores. O humor pontua o enredo, mas num registro leve: o filme nos faz
sorrir, não rir. A criatividade exuberante está intacta no roteiro perfeito. A
homossexualidade também está presente, mas sem sombra de provocação ou
caricatura, com uma dignidade e uma naturalidade inauditas.
E o cinema (o metacinema) continua como um subtema afetuoso: o protagonista
lembra os primeiros filmes a que assistiu no povoado, ao ar livre, projetados
numa parede branca. E conta que, quando havia cenas de água — rios e lagos,
mares e cachoeiras — os meninos, sugestionados, mijavam por ali mesmo e por
isso a memória olfativa desse tempo é de urina e jasmins.
A trilha sonora esmerada e nostálgica (na qual se destaca uma canção das
lavadeiras), inclui até La
noche de ni amor (A
noite do meu bem, de Dolores Durán), cantada pela mexicana Chavela
Vargas. Pedro Almodóvar, como Wood Allen, vez por outra homenageia a música
popular brasileira, muchas
gracias.
Mas, o que faz Dor e
glória ser essencialmente um Almodóvar é que, de uma maneira nunca
vista, o autor está dentro
do filme, inteiro, de corpo e alma, aparência e pensamentos, na interpretação
rica de nuances de Antonio Banderas.
O filme é autobiográfico. E não é. Porque muita coisa é verdade, muita
coisa é inventada. A essência é verdadeira, vários episódios são imaginários.
Autoficção? O diretor brinca com isso. Numa cena, a mãe já velha diz não gostar
desse gênero. Ele pergunta: “O que você sabe de autoficção, mãe?” E ela: “Vi
você falando numa entrevista”.
É justamente essa característica de filme pessoal, pessoalíssimo, a causa
dessa guinada almodovariana. Às vésperas de completar 70 anos, o autor
brilhante de mais de 20 longas-metragens põe na tela um alter ego, o cineasta
Salvador Mallo, às voltas com questões concretas e metafísicas: a velhice, a
finitude, a decadência física, a memória, o amor e a solidão. Daí o tom
reflexivo, a estética quase minimalista, a melancolia. É o momento do acerto de
contas entre o passado e o presente, com direito a um diálogo impressionante
entre a mãe e filho, em que afloram mágoas e incompreensões insuspeitadas.
Sofrendo de todos os achaques da velhice (divertida descrição das doenças,
com desenhos ilustrativos no estilo de atlas médico, é um truque recorrente do
cineasta-roteirista, mas que funciona sempre), Salvador confessa ao médico não
haver se recuperado de uma operação da coluna, nem da morte recente da mãe.
Ele vive só (num apartamento entupido de quadros, gravuras, esculturas,
jarros, vasos, o escambau, uma réplica do verdadeiro, vestígio mais forte da
extravagância usual), praticamente aposentado, submergindo ao vício da heroína,
quando três fatos abalam sua perspectiva: o relançamento de seu primeiro e
polêmico filme, Sabor, restaurado
pela Cinemateca de Madrid; o reaparecimento inesperado do seu grande amor, de
quem não tinha notícias há mais de 30 anos, e um desenho anônimo (dele quando
criança), encontrado numa galeria. O velho maricón
(como o chama, entre carinhoso e ferino, o ator principal do seu
antigo filme, Alberto, com quem estava rompido desde o lançamento, há 32 anos),
o velho maricón é
sugado por um redemoinho de emoções, que poderá levá-lo à morte ou resgatá-lo
para a vida. Mais não digo para não fazer spoiler.
Dor e glória talvez seja o melhor filme de
Almodóvar. Seguramente é o mais belo e mais poético. E nos dá de brinde a
atuação estupenda de Penélope Cruz, como a jovem mãe sofrida e resoluta do
cineasta, num vilarejo pobre da Espanha dos anos 60. Como dizem os críticos:
imperdível.
*Homero Fonseca é jornalista e escritor, autor do romance "Roliúde", dentre outras obras.
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