Por
Gustavo Conde*
A vitória de Lula no STF foi
maior do que se imagina. A lente do ceticismo que, de maneira compreensível nos
toma a todos, impediu que assimilássemos sua dimensão real. E quem nos forneceu
gratuitamente a "chave" dessa dimensão, ironicamente, foi a imprensa
tradicional.
Ela interpretou o resultado com mais acuidade e interesse - e com
profunda lamentação. A nossa leitura, acostumada com "derrotas"
seguidas, não quis codificar o que estava diante de si: uma vitória espetacular.
A "mera" aceitação deste habeas corpus leva o processo
de Lula ao labirinto infinito das subjetividades do Supremo. Isso eleva o
cenário das possibilidades à décima terceira potência - o que continua sendo
arriscado, mas agora para os dois lados.
Agora, pode-se pedir vista, pode-se adiar, pode-se enxertar,
enfim, pode-se criar um debate sem fim. Sérgio Moro sofreu o seu maior
cala-a-boca até aqui e ficou com a broxa na mão. A imprensa sabe que, a partir
deste momento, o STF ficou menos manipulável. Em outras palavras: a infinitude
narrativa migrou da Lava Jato para o STF.
O instante se traduz pela seguinte equação: o bloco do golpe terá
de pressionar , daqui por diante, ministro por ministro - e não só a
"adestrada" Cármen Lúcia. Isso gera muito mais trabalho e resulta em
sub chantagens que escapam ao mundo controlado da 'realidade' golpista.
A confortável operação sangrenta de caça à Lula, portanto, foi
lançada ao imponderável das crises existenciais que subjazem às ilhas supremas
do nosso tribunal máximo, tão bipolar quanto irritadiço. Era tudo o que o golpe
não queria.
O
ethos histórico de um defensor
Essa vitória também atende pelo singelo nome de um veterano
magistrado. A defesa de Lula conta com estrelas de primeiríssima grandeza, como
Cristiano Zanin, Valeska Teixeira e Sepúlveda Pertence. Mas, eis que, aos 45 do
segundo tempo, entra em campo um defensor que parecia estar guardando seu
talento para aplicá-lo justamente neste preciso instante.
José Roberto Batochio colocou o STF no bolso. Fez uma defesa
impecável, histórica, contundente, técnica e, ao mesmo tempo, inflamada. Sua
voz incorporou o sentido geral de sua dicção: levemente afônica, com falhas
específicas, quase calculadas. Um "granulado" vocal que hipnotizou o
ministros.
O som se somou ao sentido porque aquele conjunto de
"falhas" são decorrentes de densidade emocional, não de afonia por
desgaste físico. Batochio impregnou o STF com sua voz e com sua erudição
controlada e prática. Foi uma aula, um raro momento de soberania intelectual
naquele tribunal que se autodegradou tanto de dois anos para cá.
Na esfera do conteúdo propriamente dito Batochio foi sutil como
uma lâmina de aço forjado em dobras: invocou nada mais nada menos que
Chrétien-Guillaume de Lamoignon de Malesherbes, o defensor de Luís XVI.
Narrou a tensão que cercava a defesa do magistrado francês no
longínquo ano de 1792, mobilizando assim um conjunto de sensibilidades difusas
em sua audiência, desde o banho de sangue da revolução francesa até a cifra
trágica de se evocar um defensor que foi guilhotinado.
Feita essa complexa armadilha retórica, citou em francês a frase
que deve estar ecoando até agora nos ouvidos dos ministros:
"J'apporte à la Convention la vérité et ma tête. Elle pourra
disposer de ma vie quand elle aura entendu mes paroles". Tradução:
"Trago à convenção a verdade e a minha cabeça. Poderão dispor da segunda,
mas só depois de ouvir a primeira".
Está aberta a nova temporada de caça aos ministros
Ao dispor dessa tática de persuasão mais agressiva e passional,
habitante histórica do próprio direito, Batochio impôs seu regime de sentido
àquele tribunal. Pode-se ver a sessão quantas vezes quiser: o que ficará
impregnado na memória e no juízo é a fala de Batochio.
Não bastasse o tom, a dicção, o conteúdo e a própria voz -
significada na semiótica da respiração - Batochio ainda cometeu o abuso de
improvisar: diante do iminente adiamento do mérito, pediu de maneira inesperada
uma salvaguarda para seu cliente, de maneira a protegê-lo até o momento da
decisão do Habeas Corpus propriamente dita.
Este pulo do gato jurídico - absolutamente legal e previsto na
letra - devastou o horizonte azul-tucano do prosseguimento do golpe. Porque ele
gera cenários mais complexos do que o mérito em si poderia gerar. A
admissibilidade do Habeas Corpus reabre a temporada das pressões.
De uma certa maneira, repete a institucionalidade teatralizada do
impeachment de Dilma Rousseff, mas, agora, diante de outra conjuntura política:
o desgaste monumental do usurpador da república, do próprio STF e do próprio
instituto das eleições majoritárias, na iminência de sua realização.
Não bastasse essa pletora de complicadores, o réu é nada mais nada
menos do que o franco favorito a ser reconduzido ao cargo de presidente da
república, além de estar indicado ao prêmio Nobel da Paz e de ter a atenção
máxima da imprensa mundial que, diferentemente da brasileira, não tem rabo
preso nem exerce pressões diretas naquele tribunal - senão as pressões legítimas
da opinião pública internacional.
A
dança das pressões
O STF re-encontrou, por assim dizer, sua razão de ser. Ele subtrai
o protagonismo pálido e cansado de Sergio Moro e da Lava Jato - que arrasaram
não só a economia, mas todo o ordenamento jurídico do país - e volta a tentar
praticar algum tipo de direito com base na constituição.
Mais do que isso. O 7 a 4 de
Lula tira de Cármen Lúcia o controle irrestrito dos prazos daquela corte. É por
isso que a imprensa tradicional se quedou paralisada diante da decisão
supracitada. Ela sabe que a narrativa do golpe sofreu um estilhaçamento. São 11
ministros. Enquanto se pressiona um, distensiona-se outro e assim por diante.
Não há energia suficiente - nem com todos os prêmios e minutos de
jornal nacional - que dê conta de 11 ministros e suas respectivas vaidades e
bipolaridades. Essa é a lógica, afinal, de um tribunal superior: sua indomesticação
(ainda que por motivos meramente humanos, demasiadamente humanos).
Diante desta realidade, impõe-se obrigatoriamente o poder de
convencimento e a inteligência, justamente os dois atributos que a defesa de
Lula conseguiu mobilizar.
O
debute dramático de Raquel Dodge
Vale o registro: diante da fala monumental de Batochio, não havia
muito o que Raquel Dodge fazer. Mas, o desenrolar da sessão foi muito mais
dramático do que isso. Raquel Dodge debutou para o país. Foi sua primeira
intervenção de destaque nacional. E foi a pior performance que um
procurador-geral da república poderia ter a infelicidade de experimentar.
Dodge gaguejou, errou (foi corrigida por Marco Aurélio) , vacilou
e demonstrou que mal estudou a questão, num gesto de profundo desprezo pela
corte que, ademais, é o que mais importa naquele lugar - negativamente, é óbvio.
Chegou a causar comiseração. O país não conhecia esse
"destalento" de nossa 'incensada' procuradora, tão elogiada por
Michel Temer que foi. Restou a Dodge a profusão infinita de memes e o papel de
nova sub celebridade jurídica no concorrido mundo do direito brasileiro – que
já conta com Janaina Paschoal e Sergio Moro.
A
disputa sangrenta pela narrativa
Aliás, esse é outro ponto que merece um comentário. Máscaras
caíram nesta sessão histórica. Poder-se-ia dizer: a realidade política
brasileira mudou de novo. Mais do que representar a liberdade de Lula, o STF
chocou a imprensa nativa e desorganizou todo o cenário costurado anos a fio
para o encarceramento pirotécnico do ex-presidente.
Isso causa um certo pânico nas fileiras do golpe. E por uma razão
muito simples: o que se perde não é propriamente a janela de um prisão
cinematográfica antes das eleições. O que se perde é a narrativa. Este é o
elemento de disputa mais sensível deste momento.
Todos estão em busca da "narrativa". É por isso que a
Globo investiu todo o seu jornalismo na cobertura enviesada da execução de
Marielle Franco. Eles viram em Marielle a chance de retomar um sentido já
perdido, qual seja: o de estar ao lado do povo.
Ocorre que a estratégia, além de não dar muito certo - a rejeição
à Globo continua com viés de alta - encontrou mais esse obstáculo: a perda de
outro elemento narrativo: o garantismo temático do golpe - que seria a prisão e
humilhação de Lula.
A
população está no jogo
De sorte que as coisas não estão fáceis nem para a Globo e nem
para a imprensa nativa de maneira geral neste momento. A eleição se aproxima e
o desespero toma conta de um consórcio do golpe que não tem sequer um nome
competitivo para estampar na cédula eleitoral.
A população brasileira, embora não esteja nas ruas como muita
gente desejaria, está presente nas pesquisas e no clima generalizado de
rejeição ao golpe. Isso é participação popular, sem a menor sombra de dúvida.
A população está dizendo: não tentem mais nenhum tipo de golpe.
Nós estamos aqui e já deixamos claro quem nós queremos na liderança deste
processo de retomada da história e da democracia.
A trágica execução de Marielle, de repercussão internacional,
reacendeu essa chama de resistência e caráter da população brasileira, além de
chamar a atenção da imprensa mundial para o que está ocorrendo aqui no Brasil
em todos os sentidos.
Marielle estava presente naquele tribunal em que Batochio evocou a
revolução francesa. Não poderia não estar. O crime de execução chocou todos os
ministros porque chocou todos os brasileiros. O crime de execução foi
intimidatório, foi em forma de recado, foi carregado de simbologia e de
saturação deste golpe que destruiu toda a estrutura econômica e social do país.
A
retomada do raciocínio democrático
Há um sentimento profundo de esgotamento desta narrativa lavajateira.
A exceção dos odiadores profissionais de praxe, minoria tão ruidosa quanto
insignificante, o país inteiro quer retomar seu raciocínio democrático e seu
rumo histórico.
A vitória de Lula no STF, repleta de significado, precisa ser
devidamente dimensionada. Ela é uma imensa pedra no sapato do golpe. Ela fere a
narrativa assaz conhecida, pré concebida e controlada. Ela nos remete de volta
a um fio de realidade, ao curso mais natural dos acontecimentos, à narrativa
coletiva, democrática, consequente e com um mínimo de legitimidade.
Tudo está afluindo para esse momento. A imprensa trava sua relação
conturbada com as redes sociais, as usinas de fakenews vão sendo desmascaradas
(MBL e derivações), os candidatos do golpe vão se colocando - de maneira constrangedora,
não importa - e a personagem mais resiliente de todo esse processo vai
mostrando que ainda pode surpreender mais uma vez, não bastasse sua vida ser a
própria surpresa encarnada, do nascimento às caravanas.
Como a garganta embargada - mas assertiva - de José Roberto Batochio,
o brasileiro está com seu grito entalado na garganta. Ele teme soltar esse
grito pois o cerco a que foi submetido contra sua vontade - a imposição de uma
política que não foi escolhida em nenhuma urna - ainda grassa e ameaça, seja
com os executores de Marielle, seja com o abandono de soberania em uma empresa
como a Embraer, seja com o extermínio dos direitos trabalhistas.
Nesse sentido, Batochio tem ao menos mais cem milhões de colegas
defensores de Lula. Todos que depositam sua esperança em Lula através das
pesquisas de opinião estão lhe emprestando também a mais comovente e genuína
defesa, a defesa que nasce diretamente do povo. Por isso, a importância da
vitória, por isso a necessidade de comemoração, por isso o momento oportuno de
reapropriação da narrativa.
Ali, da tribuna, José Roberto Batochio, por sua vez, também
representou mais de cem milhões de brasileiros. Talvez o embargo e a profunda
emoção que se apoderou de sua voz decorra das milhões de vozes que estavam ali
também representadas.
Batochio investiu-se de autoridade e força retórica ao citar
Malesherbes. Mas, certamente, Malesherbes também foi investido de profunda
honra jurídica ao ser invocado por Batochio. Quem faz o protagonismo de seu
tempo se conecta de maneira simétrica com seu antepassado. Que a coragem e a
paixão de Batochio nos sirva de inspiração para os próximos passos em busca da
narrativa democrática e da legitimidade republicana.
Gustavo Conde é professor
universitário, linguista, músico e escreve para os principais sites da mídia alternativa
brasileira.
STF não tem nada a ver com Justiça, tem mais a ver com prostituição!
ResponderExcluirSTF está mais próximo de um puteiro do que de um tribunal!