Ex-diretor da
Petrobras de 2003 a 2008 e professor do Instituto de Engenharia e Ambiente da
Universidade de São Paulo (IEA-USP), Ildo Sauer rechaça o plano do governo de
Michel Temer de privatizar a Eletrobras.
Na segunda-feira, 21 deste mês, a estatal anunciou ao mercado a
intenção do governo de se desfazer de seu controle. Hoje, a União detém 63,2%
das ações. A notícia surpreendeu o mercado, pois os papeis da empresa subiram
mais de 50%. Mas não Sauer. “É um desastre continuado. Vai aprofundar os
problemas e aumentar os preços.”
A entrevista é de Dimalice Nunes,
publicada por CartaCapital, em 24/08/2017.
Na entrevista o especialista traça um breve
histórico dos fatores que levaram à desorganização do setor elétrico, alvo de
diversas privatizações nos governos do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso,
e garante: “não tem modelo de privatização aceitável”.
Segundo ele, o
objetivo de aumentar a participação da iniciativa privada no setor é o mesmo da
gestão tucana: elevar a eficiência e, de quebra, tentar acomodar o rombo das
contas públicas. “O governo Fernando Henrique começou a privatizar dizendo que
ia abater a dívida pública, melhorar a eficiência, a qualidade e diminuir as
tarifas. A dívida pública só aumentou, as tarifas aumentaram muito acima da
inflação e criamos um racionamento”, lembra Sauer.
Vamos à entrevista:
Qual a primeira impressão a respeito do
anúncio da possível privatização da Eletrobras?
Sem espanto e sem alegria. Sem alegria
porque é um desastre continuado. Já vem de décadas essa postura em relação aos
recursos naturais e seu aproveitamento em favor da transformação da sociedade
brasileira.
Vem com a tentativa de privatizar a
utilização aparelhada do sistema elétrico pelo governo de José Sarney, as
tentativas de destruição do sistema elétrico nos governos de Fernando Henrique,
o não resgate do sistema elétrico como deveria e como foi proposto pela
campanha do governo Lula, ao continuado loteamento dos cargos do sistema
elétrico pelo governo de coalizão ou cooptação, que já vem de antes, mas foi
mantido.
Houve um breve interregno numa
tentativa de mudar, com a presidência do Pinguelli (Luiz Pinguelli Rosa) na
Eletrobras, mas ele foi demitido pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva,
que dizia que o Pinguelli não tinha senadores e o Sarney tinha.
E com a ex-presidente
Dilma Rousseff aconteceu o desastre maior: ela fez a reforma do modelo do setor
elétrico em 2004, mas abandonou o que foi compromissado na campanha, o resgate
das empresas públicas e seu papel de garantir o abastecimento da energia no
Brasil em conjunto com a iniciativa privada, vendendo a energia a um custo
entre o médio e o custo marginal, usando essa diferença para ampliar os
investimentos no setor e investindo em educação e saúde pública.
Quais foram os principais erros de Dilma?
O que ela fez foi destruir o valor
econômico da Eletrobras para manter os privilégios dos grupos privados que
vendiam energia a custos altíssimo, em leilões de natureza complexa e suspeita
– leilões de reserva – e compraram muita energia térmica cara.
Ela resolveu renovar
as concessões e forçar a venda da energia a um preço próximo do custo da operação
e manutenção, 10 ou 12 reais o megawatt/hora mais impostos, quando os privados
vendiam entre 250 ou até 1,1 mil reais megawatt/hora. Então ela usou o
potencial de geração de recursos para fazer da Eletrobras uma muleta e
subsidiar um sistema que não funciona.
E agora com o governo Temer?
É a pá de cal em
tudo. A impressão que eu tenho é que é um bando de gangsteres ou de ratos que
estão vendo o navio afundando e tentam abocanhar o resto de queijo, de riqueza,
para se locupletar enquanto o navio não afunda. É importante dizer que o que
esse governo está fazendo com essa ousadia, essa audácia, e ausência total de
legitimidade é um acinte à democracia porque é um aprofundamento da
cleptocracia. É um contraste brutal entre o que poderia ser feito e o que está
sendo feito.
Essa medida foi proposta pelo Ministério da Fazenda, para cobrir o rombo das
contas públicas, e pegou o mercado de surpresa. Como esse afogadilho prejudica
a segurança do sistema elétrico? Há risco de desabastecimento?
Não. O fato de vender usinas ou o
controle de usinas não afeta diretamente a produção de energia. Até porque a
Eletrobras está completamente manietada já há muito tempo. Ela não vem sendo
usada como protagonista, virou muleta auxiliar dos negócios privados.
O problema existia e está se agravando.
O sistema está em risco porque estamos há muito tempo com planejamento
completamente equivocado, escolha de vencedores de leilão por critérios
errados, violando o interesse público e falta de contratação de capacidade
suficiente.
Por isso o sistema
está em risco. Mesmo com recessão continuada estamos com risco de falta de
energia. Imagina se a economia estivesse crescendo? O sistema elétrico está
completamente deteriorado e as medidas que o governo Temer está tomando tem
como objetivo proteger os interesses de investidores do sistema financeiro que
querem, num momento de fragilidade da mobilização popular, abocanhar ativos
para depois revalorizar a empresa e aumentar tarifas.
O governo fala em redução das tarifas com um potencial ganho de eficiência da
empresa depois de privatizada. Qual deve ser o impacto?
É um acinte à inteligência de qualquer
ser racional a afirmação do ministro (ministro de Minas e Energia, Fernando
Coelho Filho) de que isso vai baixar tarifa. A energia está contratada a preços
aviltados para tapar a lacuna dos grandes erros dos outros contratos. Então
ninguém vai comprar para operar daquele jeito, vão comprar para depois realizar
uma nova manobra para reavaliar o valor e dizer que “não, essa energia está
muito abaixo do mercado, precisamos dar um jeito”. Isso é histórico no Brasil
no setor de energia.
O governo FHC começou
a privatizar dizendo que ia abater a dívida pública, melhorar a eficiência, a
qualidade e diminuir as tarifas. A dívida pública só aumentou, as tarifas
aumentaram muito acima da inflação e criamos um racionamento. E essa trajetória
de aumento das tarifas acima da inflação continuou nos governos Lula e Dilma.
Falta argumentos racionais para fazer o que eles estão fazendo. É uma agressão
ao sistema democrático e ao interesse público.
O que deveria ser feito para reorganizar o setor e garantir a oferta de energia
com modicidade das tarifas?
São duas tarefas: uma é impedir a
privatização da Eletrobras, que vai agravar tudo. A segunda é que o modelo colocado,
herdado dos governos FHC, Lula e Dilma, precisa ser revisto. É preciso revisar
o modelo de planejamento, é preciso retomar a contratação centralizada, é
preciso reorganizar o setor e contratar a construção das melhores usinas.
No Brasil não faltam recursos, o maior
potencial de geração de energia hoje é o eólico, que adequadamente combinado
com o hidráulico poderia atender toda a demanda do Brasil até quando a
população vai se estabilizar, em 2040, como o previsto pelo IBGE, em 220
milhões de habitantes, e dobrando o consumo per capita.
Não faltam recursos naturais, não falta
capacidade tecnológica, não falta recursos humanos: falta organizar o sistema,
geri-lo e operá-lo de acordo com o interesse público. Tem que trocar os
critérios de operação. A proposta do governo Temer vai aprofundar os problemas
e aumentar os preços, porque ele eleva os riscos para os agentes individuais.
O que o governo Temer
está fazendo é, face ao desastre do legado do governo Dilma, aproveitar essa
lacuna a considerar que o interesse público não tem mais chance. É fazer o
assalto final ao que restou para gestar novos interesses que depois de
constituídos irão se sobrepor e irão impor suas condições ao governo que virá.
Temos de enfrentar isso com todo o vigor. Um governo sem legitimidade que quer
destruir uma construção histórica de mais de meio século e um recurso natural
permanente.
Ainda não há definição sobre o modelo que será usado para a venda do controle
estatal da Eletrobras, mas existiria um modelo menos pior, capaz de assegurar
algum nível de controle?
É não vender e
restaurar a Eletrobras. Restaurá-la na sua capacidade, reorganizar sua gestão e
não inventar mentiras como o aumento da eficiência e a redução das tarifas. É
restaurar a gestão do interesse público para mudar o País. Não tem modelo de
privatização aceitável.
Alguns envolvidos no projeto de privatização da Eletrobras fizeram parte do
governo FHC na época do apagão. Há algum paralelo entre as situações?
Claro, a Elena Landau, que presidiu o
conselho de administração da Eletrobras e o presidente da Eletrobras (Wilson
Ferreira Júnior), um notório técnico que era serviçal do projeto tucano da
privatização das empresas de São Paulo, a CPFL, Eletropaulo e Cesp.
Ele é definido como técnico, mas as
soluções técnicas podem servir a dois interesses, ao público ou ao dos grupos
econômicos e financeiros. Os que estão lá hoje participaram ativamente do
racionamento do Fernando Henrique, todos eram sócios do modelo daquele tempo,
vinculado à utilização das empresas estatais em favor dos grandes interesses
privados e financeiros.
APOIO: PCB (Partido Comunista Brasileiro) de
Garanhuns/PE