Por Roberto Almeida
Belchior chegou no
céu num dia 30 de abril. Há anos estava cansado de andar com os pés cheios de poeira, tinha esquecido o coração selvagem, resolvera os problemas
de alucinação, e agora ansiava por viver tudo outra vez.
Longe de casa, a sua
simpática Sobral, no Ceará, resolveu partir desta para outra no interior do
Rio Grande do Sul, terra de Elis Regina, que tornou conhecida no Brasil inteiro
umas de suas melhores canções, “Como Nossos Pais”.
Poeta, compositor
inspirado, cidadão consciente, o artista cearense por certo andava desiludido da
vida, ainda mais com tantas turbulências no país chamado Brasil.
Tudo tem sua hora e
um dia todos temos que dar adeus à divina
comédia humana.
Assim fez o artista,
que nunca envelhece, como nos ensinou outro poeta, este da Bahia.
E num dia nublado,
cinzento, não apropriado para entusiasmos exacerbados, Antônio Carlos chegou ao
céu depois de viver o seu tempo na terra, em meio a secas, jogos de futebol,
oportunismos políticos, missas nas igrejas e formigas trafegando sem porquê, enquanto o sangue ainda jorra nos
jornais.
Tão logo chegou ao
paraíso, um lugar totalmente diferente deste, do lado de cá, Antônio Carlos
Belchior foi recepcionado por um coral de anjos e levado ao grande salão de
artes do céu.
Talvez por que tenha
partido a menos de oito dias, Jerry Adriani foi o primeiro com quem o cearense
deu de cara no imenso salão celestial.
Dois estilos
diferentes, duas vertentes diferentes da música popular brasileira, nem por
isso os dois cantores deixaram de expressar a alegria do encontro e se
abraçaram com emoção.
Jerry com aquele
sorriso cativante, Belchior com a expressão séria que o caracterizou em vida,
sem que os olhos conseguissem esconder que no fundo da alma era apenas um cidadão comum, um sujeito bonachão.
Se o ídolo da Jovem
Guarda não era tão da sua turma, o mesmo não se pode dizer de Raul Seixas, que
veio logo a seguir e embora tenha feito parcerias com Adriani, quando viveram a
existência terrena, filosoficamente estava mais próximo do homem nascido em
Sobral.
Raul reinventou a
música popular brasileira, com seu “Ouro de Tolo” e foi um dos poucos artistas
que teve a coragem de fazer um canto para sua própria morte. “Que venha vestida
de cetim, com a sua mais bela roupa”, disse ele na surpreendente canção.
Não há dúvida que o maluco beleza foi um místico, lunático
às vezes, que passou por todas as religiões, porém sem deixar de iluminar os
céus com sua cabeça privilegiada, o coração
noturno e a procura de Deus em todas as coisas.
Belchior, mas pé no
chão, fez música sobre a hora do almoço e cantou até os exilados, que em sua
época de pop star tiveram que sair do país e foram sofrer na França, sentindo
frio e saudades da América do Sul.
Foi singular o
encontro do cearense e do baiano e eles se entenderam como irmãos, ficando logo
claro que no céu seriam grandes parceiros, para toda a eternidade.
Aí chegou
Gonzaguinha, ao lado do pai, e os dois lembraram do tempo em que não faziam
outra coisa senão viajar e viajar pelo imenso brasilis.
Provavelmente por
ter morrido no Rio Grande do Sul, não demorou muito Antônio Carlos se deparou
com o escritor Érico Veríssimo, autor de O
Tempo e o Vento, Caminhos Cruzados, Noite, O Resto é Silêncio e tantos
outros livros que encantaram a vida do cantor na sua adolescência.
Belchior aproveitou
para confessar ao escritor que era seu fã, enquanto este disse que gostava
muito de suas composições, pelas suas preocupações metafísicas e seu viés
escancaradamente humanista.
“Acho que nos
identificamos. Meu trabalho na literatura e o seu na música se encontram nas paralelas”, comentou o Veríssimo.
Gonzagão perguntou
pelo Fagner, com quem fez alguns duetos maravilhosos na vida puramente física e
Gonzaguinha, bem leve, comentou que o céu ganhava muito com a chegada de
Belchior, garantindo que por certo até Jesus ia ficar radiante perante o
reforço do time da MPB no paraíso.
Quando chegou a Elis
Regina o autor de Mucuripe não
conseguiu conter as lágrimas. A “Pimentinha” estava do mesmo jeito, sorridente
e com a mesma voz de brilhante que conquistou o Brasil nos anos 70.
Quase não
conseguiram se desgrudar, após fortes abraços e beijos, contudo chegavam outros
e outras que partiram bem antes e Belchior não queria discriminar ninguém,
convencido de que o céu não tem espaço para preconceitos.
Assim, saudou com
carinho o Jessé, este cantarolando “Porto e Solidão”, interrompido, no entanto
por Cássia Eller, ela ainda parecendo uma garotinha.
Reginaldo Rossi, Paulo Sérgio, Leandro e Evaldo Braga chegaram
abraçados, o primeiro vestindo não se sabe por que uma roupa de garçom, enquanto
o segundo, sussurrando, soltava as primeiras estrofes da última canção.
Os da velha geração
também apareceram e Belchior sentiu-se feliz ao ver que estava na companhia de Vicente Celestino, Silvio Caldas, Eliseth Cardoso, Noel Rosa, Ataulfo Alves, Pixinguinha,
Francisco Alves e Orlando Silva.
“Quanta gente boa,
meu Deus!”, soltou o compositor, ainda mais que não mais que de repente Clara
Nunes, Vander Lee, Cazuza e Renato Russo também vieram lhe abraçar.
Chico Anísio veio
contando piadas, fazendo tipo e o clima ficou ainda mais descontraído pela
entrada em cena dos meninos traquinos do grupo Mamonas Assassinas.
Foi um desfilar de
artistas que não acaba mais e tudo era alegria, festa, comemoração.
Mesmo os santos,
como Francisco de Assis, pareciam estar de bem com a vida eterna, bem humorados...
E todos contribuíram para que a tristeza não encontrasse guarida, a saudade
fosse guardada num matulão emprestado por Marinês e Jackson do Pandeiro, num
clima verdadeiramente amistoso que irmanou cada um deles, vivendo numa
intensidade até então desconhecida, num lugar sem espaço para a tristeza e a
dor. E que era possível cantar sem riscos, com público garantido e uma gente educada
aplaudindo sem parar.
Tudo lindo, divino,
maravilhoso e melhor ainda porque agora seria pra sempre. Nunca, nunca ia
acabar.
“Saia do meu
caminho, eu prefiro andar sozinho, deixe que eu decido a minha vida...”
Salve Belchior!
*A maioria das frases e expressões aspeadas ou em itálico se referem a títulos ou versos de canções de alguns dos artistas citados.
**Foto: O Globo.