Geneton Moraes entrevista
o ex-governador Miguel Arraes
Profunda
tristeza com a morte de Geneton Moraes Neto. Nem me ocorre direito o que dizer.
Reproduzo, então, o perfil que fiz dele para a revista Continente, edição de
março de 2013.
O homem que sabe perguntar
A redação do Diario (sic) de Pernambuco nos começos dos anos 70 parecia uma velha repartição pública: entre as paredes de cor ocre com barras de um metro e meio de um marrom a óleo tenebroso, espalhavam-se caoticamente altos armários de madeira escura descascada e trôpegas escrivaninhas de aço sobre as quais pousavam robustas máquinas Olivetti. O clima geral condizia com o ambiente físico: sob o guante da censura (e sua filha dileta, a autocensura), a maior parte dos jornalistas compactuando gostosamente com o ideário da ditadura vigente, um punhado de renitentes tentava praticar o jornalismo possível naqueles anos de chumbo.
Corria o ano de 1972. Uma tarde, o marasmo cotidiano foi quebrado pelo crítico de cinema Fernando Spencer. Dirigindo-se ao chefe de reportagem Ricardo Carvalho, a mim, então editor da 1ª página e outros companheiros, Spencer mostrava o tablóide Junior, com incomum entusiasmo:
- Vocês prestaram atenção nesse menino que escreve todo sábado
para o suplemento infantil ? É um arretado!
Com efeito, os textos do garoto eram surpreendentemente bons.
Mandaram chamá-lo. Aparece um adolescente guenzo, cara de palestino, sorriso
encabulado. Chamava-se Geneton, tinha 16 anos, ainda não ingressara na
universidade, mas topava ser jornalista. Uma das primeiras matérias de que foi
incumbido seria uma reportagem sobre o Hospital da Tamarineira, o depósito de
loucos do estado. Tontonzinho, como o chamávamos, infiltrou-se no inferno e
saiu de lá formado em jornalismo. Viu cenas degradantes e ouviu lamúrias desconexas
dos internos. Depois, apresentou-se como repórter à direção do hospício e lhe
deram uma versão cor-de-rosa da situação. Nascia ali um dos grandes repórteres
da imprensa brasileira.
Décadas depois, Geneton Moraes Neto ouviu de um jornalista
inglês, Louis Heren, o conselho dado por um editor: “Sempre que você estiver
entrevistando um ministro ou um líder sindical, um empresário ou um astro de
rock, seja quem for, pergunte sempre a si próprio: Por que será que esse
bastardo está mentindo para mim?”
Era a mais perfeita tradução da primeira experiência que o jovem foca tinha
vivido no Recife naquele seu batismo de fogo na reportagem.
Poucos anos depois daquela estreia fulgurante, o magricela, já
com uns fiapos de barba, ingressou no curso de jornalismo da Universidade
Católica de Pernambuco. Aí aflorou uma paixão que duraria toda a vida: o
cinema. Ele, Amin Steple, Paulo Cunha e Camilo Brolo formavam uma turma unida
que, além do cinema, amava os Beatles & e os Rolling Stones, Gláuber Rocha,
os tropicalistas e, pelo menos no caso de Geneton, o futebol de botão. Com uma
câmera super 8 na mão e muitas ideias na cabeça, fizeram filmes que causaram
algum estardalhaço na cena cultural do Recife.
Essa experiência seria um ingrediente importante no caldo de
cultura de sua formação, que desembocaria na síntese atual: o brilhante
repórter televisivo que, na maturidade, alcançou o status de documentarista. É
um dos poucos profissionais desse meio que produz matérias rigorosamente
autorais. Ele se pauta, pesquisa, cai em campo, faz entrevistas e edita seus
próprios programas.
Pouco tempo depois de sua chegada ao sesquicentenário DP – que
foi como que uma lufada de vento fresco a levantar a poeira do marasmo da velha
repartição -, Geneton transferiu-se para a sucursal do Recife do Estadão, onde
estávamos eu e Ricardo Carvalho, mais Paulo Cunha, Paulo Moraes e o fotógrafo
Josenildo Tenório, sob o comando sereno de Carlos Garcia.
Era o auge da ditadura militar. O jornalão dos Mesquita assumiu
uma corajosa postura de oposição e por isso era açoitado impiedosamente pela
censura. No lugar das matérias vetadas, começou a publicar receitas de bolo,
inclusive na primeira página. E depois os versos de Camões (desconfio que todo
Os Lusíadas foi desfiado). Era uma maneira de fazer os leitores entenderem a
situação, uma forma tão sutil e ardilosa de denunciar a censura que os próprios
censores não tinham como impedir. Meninos, vocês que vieram depois não sabem
como viver (e trabalhar em jornal) era perigoso naquela era. Carlos Garcia foi
preso e torturado pelo coronel Cúrcio Neto , sua casa vasculhada e sua família
ameaçada pelos esbirros da repressão. Aprendemos todos a fazer uma espécie de
jornalismo de guerrilha: ocupar os espaços possíveis para denunciar o
totalitarismo e fazer eco às aspirações democráticas de políticos
oposicionistas, profissionais liberais, intelectuais, estudantes,
sindicalistas, parte do clero.
Invariavelmente ao fim do expediente quase sempre tenso,
formava-se na sucursal uma roda de dominó, esse “esporte nacional” do Recife.
Geneton era dos mais assíduos. Aquilo funcionava como espécie de catarse.
No Estadão, pela reduzida equipe, a convivência era inevitavelmente intensa.
Então pude observar de perto o cara que ainda não completara 20 anos no seu
afazer jornalístico. Em primeiro lugar, não era um deslumbrado, apesar dos
constantes elogios – dos chefes, dos colegas, dos leitores – ao seu trabalho.
Em segundo lugar, era um leitor voraz e, portanto, bem formado e informado. Em
terceiro lugar, nunca caía em campo sem antes pesquisar e estudar minimamente o
assunto (esse minimamente é por conta das vicissitudes da profissão, os prazos
curtíssimos para elaborar as matérias). E isso, garotada, é mais incomum do que
pensa nossa vã filosofia (é cruel ver a enxurrada de repórteres tontos que no
dia a dia de uma redação saem às ruas para entrevistar alguém ou cobrir um
assunto sobre os quais não têm a menor ideia).
Por fim, mas não menos importante, uma característica de GMN é a
total ausência de arrogância no trato com as fontes ou com quem quer que seja.
No nosso meio, onde a fatal combinação de ego inflado com insegurança produz
toneladas de prepotência, chega a ser espantoso. Mas isso não é só fruto do
caráter amável do camarada. É também a consciência do seu papel de transmissor
de informação ao público. (Quão patéticos são jornalistas que competem com seus
entrevistados ou que se valem do texto para arrotar erudição! Desconfiem de
entrevistadores que comumente fazem perguntas mais compridas do que as
respostas dos entrevistados!)
Mas voltando ao nosso personagem, aquela velha paixão pela arte
da imagem em movimento levou-o à televisão onde está desde 1985. Foi repórter,
correspondente em Londres, editor do Jornal da Globo e do Fantástico. E nessa
armadilha que pode ser mortal para quem se forma no jornalismo impresso (ou
escrito, como ele observou outro dia, face às novas mídias digitais) seu texto
se manteve incólume - criativo e refinado, levemente superlativo. Nessa labuta
televisiva revelou-se outro traço notável do sujeito: a persistência. Pense num
repórter carrapato! Para fazer uma boa matéria ou uma entrevista exclusiva,
liga ou bate à porta da “vítima” 10, 12, inúmeras vezes. Leva muito “não”, mas
consegue façanhas. A célebre entrevista com Carlos Drummond de Andrade, feita
por telefone menos de um mês antes da morte do poeta (e que rendeu um livro
notável), é exemplar. Geneton descobriu que o vate mineiro, avesso a
entrevistas, tinha mania por conversar ao telefone. E foi utilizando esse
aparelhinho neutro que conseguiu fazer 75 perguntas, obtendo revelações até da
vida íntima do arisco poeta.
Nesses 40 anos de profissão, passaram pelo crivo de Geneton, só
para citar os mais cintilantes: Jorge Amado, Millor Fernandes, Jarbas
Passarinho, Roberto Carlos, Leonel Brizola, Geraldo Vandré, Mário Quintana,
Nelson Rodrigues, Pelé, Luiz Inácio Lula da Silva, Ariano Suassuna, Gilberto
Freyre, João Cabral de Melo Neto, Francisco Julião, Geraldo Vandré, João
Saldanha, Oscar Niemeyer, Chico Buarque, o ex-presidente americano Jimmy Carter,
o Nobel José Saramago, o cardeal sul-africano Desmond Tutu, os escritores
Carlos Fuentes, Cabrera Infante, Norman Mailler, Anthony Burguess, o cineasta
Woody Allen, o jornalista Gay Talese, a atriz Janet (Psicose) Leigh, o
astronauta Eugene Cernan (o homem que bateu o recorde de permanência na Lua),
Theodore Van Kirk (o navegador do avião que jogou a bomba atômica sobre
Hiroshima), Eva Schloss (sobrevivente dos campos de concentração de Auschwitz).
Publicou mais de uma dezena de livros de
reportagens, entre os quais Hitler/Stalin: O Pacto Maldito (em parceria com
Joel Silveira; Editora Record - 1990), Nitroglicerina Pura (em parceria com
Joel Silveira, Editora Record - 1992), Dossiê 50: Os Onze Jogadores Revelam os
Segredos da maior Tragédia do Futebol Brasileiro (Editora Objetiva - 2000),
Dossiê Moscou (Geração Editorial – 2004) e Dossiê Brasília: os Segredos dos
Presidentes - Editora Globo - 2005).
Ano passado, recebeu a Medalha João Ribeiro, da Academia
Brasileira, por proposta do acadêmico Ledo Ivo na qual, comentou modestamente,
o poeta “comete exageros – a meu favor”. Se pesquisarmos no Google, seu nome
obtém 86.100 resultados. No Face Book, na secção “Sobre” (onde as pessoas
escrevem sua autobiografia), está registrado apenas: Repórter.
Aos 56 anos, três filhos (Clara, jornalista; Joana, pintora e
Daniel, estudante), quatro netos, o recifense tem se preocupado com a História
("Fazer jornalismo é produzir memória", afirma, convicto). Deu um
passo decisivo em sua carreira, ao largar a edição do Fantástico para fazer
matérias especiais e editá-las no canal GloboNews, onde já produziu
documentários de fôlego como Canções do exílio (com Caetano Veloso, Gilberto
Gil, Jards Macalé e Jorge Mautner) e o mais recente Garrafas ao mar: a víbora
manda lembranças, sobre Joel Silveira, que ele reputa o maior repórter
brasileiro de todos os tempos, de quem se tornou-se amigo, parceiro e filho
espiritual, digamos assim, e com quem gravou horas de entrevistas,
transformadas agora num valioso documento sobre a imprensa brasileira.
Nessa linha de reportagens históricas, um exemplo são as
conversas com os quatro ex-presidentes do Brasil pós-ditadura (Collor, Itamar,
FHC e Lula), em que arrancou revelações sobre as entranhas do poder, e as
entrevistas com personagens centrais dos “anos de chumbo”, dos dois lados do
espectro ideológico, como os generais Leônidas Pires Gonçalves e Newton Cruz e
o ex- guerrilheiro Carlos Eugênio Paz, comandante militar da Ação Libertadora
Nacional (ANL).
Essas três últimas entrevistas são especialmente reveladoras do
“método” GMN: nas duas primeiras, afável, mas incisivo, fez algumas perguntas
que foram “devolvidas” com certa agressividade pelos dois militares.
Impassível, continuou a inquiri-los. (“Nem sempre respondi, porque meu papel,
ali, não era o de fazer ‘discurso’, mas o de ouvi-los, para levar ao público o
que duas figuras importantes do regime militar tinham a dizer” - pontuou.)
Na conversa televisiva com Carlos Eugênio Paz foi direto a um ponto muito
delicado: os rumores de que teria participado da execução de um companheiro de
luta. O ex-guerrilheiro confirmou o fato e explicou porque não tinha confessado
antes: “Os jornalistas nunca me perguntaram diretamente sobre o assunto”.
Repórter, demonstra Geneton, é essencialmente um ser que
pergunta.
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FRASES DE GENETON MORAES NETO
“Pertenço ao PPB: Partido dos Perguntadores do Brasil. Sem pretensões risíveis,
sem delírios megalomaníacos (tão comuns em jornalistas...), penso que posso,
como jornalista, dar uma contribuição mínima ao meu país: fazer do jornalismo
que pratico uma fonte de produção de memória.”
“Sou repórter, não sou militante. Como personagem jornalístico, George Walker
Bush me interessa tanto quanto - por exemplo - Vladimir Ílitch Uliánov, o
popular Lênin.”
“Não existe nada tão triste quanto a figura do velho jornalista, pretensamente
‘sábio’, que passa o tempo todo jogando no lixo as matérias (e o entusiasmo)
dos repórteres. Eles fazem mal à saúde da profissão, porque sofrem de uma
doença que cataloguei como Síndrome da Frigidez Editorial (SFE). É um mal que
acomete os ‘derrubadores de matérias’”.
“Quem eu gostaria de entrevistar? Deus, é claro. Apontaria para o planeta Terra
e perguntaria: “Seja sincero: era isso o que o Senhor queria?”.
UM TESTEMUNHO FABULOSO TIRADO DO BAÚ DO ESCRITOR E JORNALISTA HOMERO FONSECA. JORNALISTAS COMO GENETON MORAES NETO HONRAM A PROFISSÃO E DIGNIFICAM A CATEGORIA, ATUALMENTE TÃO DESGASTADA POR TER SE SUBMETIDO AO PODER POLÍTICO E TROCADO SUA INDEPENDÊNCIA POR MÍSEROS PUNHADOS DE DINHEIRO ROUBADO DA PROPINA DO PETROLÃO, COMO É O CASO DE ALGUNS CAFAJESTEZINHOS E PRINCIPALMENTE DO DUBLÊ DE JORNALISTA, PAULO VENDIDO AMORIM.
ResponderExcluirP.S.: - Este, sim!!! GENETON praticava um jornalismo com paixão, conteúdo e credibilidade. Que a terra lhe seja leve!!!
Quando comecei a trabalhar como jornalista, ainda como estagiária no Diário de Pernambuco, Geneton Moraes já era praticamente um mito para aqueles que acreditavam em um jornalismo sério, investigativo, privilegiando a boa prática da reportagem. Geneton marcou a minha vida e acredito, de toda uma geração de jornalistas, principalmente quem teve o privilégio de trabalhar com ele. Fiquei bastante comovida com a sua partida inesperada. O jornalismo perde um dos seus principais expoentes. Mas fica o seu legado. Só nos resta agradecer a Deus pela sua vida e pelo seu trabalho que marcou uma época.
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