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FELICIDADE AO ENTARDECER - Conto inédito de Roberto Almeida


A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros/Vinha da boca do povo na língua errada do povo/Língua certa do povo/Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil (Manuel Bandeira). 

Aristide acendeu o cigarro, lembrado que no mês de abril completaria 76 anos.

Tinha perdido alguns dentes, nos últimos três anos,  e eles faziam falta. Na hora de comer um pedaço de carne, ou mesmo o pão.

Fora criado em cidades pequenas, trabalhando desde cedo. Pegou em enxada e botou saco de açúcar nas costas.

Estudou pouco, porque ganhar o sustento,  garantir a feira,  foi o mais importante desde cedo.

Quando chegou aos 21 criou coragem e arribou pra um lugar grande.

Lá foi sua escola. Até hoje aprende.

Quando chegou não tinha shopping, nem celular, os jovens pra se divertir iam ao cinema. Os mais velhos viam televisão.

Hoje tá tudo mudado. Se conversa menos. Todos viciados nesse zap, na internet dia e noite.

Até a mulher, mais estudada, vive no YouTube, ouvindo rezas, aprendendo jardinagem, escutando Roberto Carlos.

Será que só ela se mantém fiel ao velhinho, que já foi rei da juventude?

Ludmila, não sei onde danado arranjaram esse nome, é sua companheira há 45 anos.

Também tá desdentada, engordou, nem parece a mulher de novela que abraçou pela primeira vez em 1988.

Sentiu um cheiro tão bom, doce misturado com salgado, nem sabe dizer.

Num tirou mais ela da cabeça, ficou excitado por perceber que ela gostou. Daí foi um pulo para a troca de beijos, amassos e noites de amor que não acabaram mais.

Ainda se abraçam como antes, beija seus pés bonitos, bem feitos,  e a penetra fingindo que ainda tem 30 e poucos anos.

Envelhecer não é muito bom, pensa Aristide. Perder os dentes é pouco. Aparecem dores, as pernas fraquejam, o coração cansa na hora de subir uma ladeira. E, nem as orações dão jeito, quando pensa que não o cabra tá numa mesa de cirurgia. Os médicos indiferentes ao medo da faca que corta.

Mesmo assim, viver é bom. Tem Ludmila, a comidinha preparada com carinho, os filhos espalhados, mas que sempre aparecem e as netinhas, que todo avô e avó ama em dobro. 

Ela fez ele tomar gosto pela leitura e o ensinou a ouvir música. Ludmila gosta de uma misturada danada. Roberto, Benito de Paula, Chico Buarque, Luiz Gonzaga, Joanna, Fafá, Pitty... Vive a cantarolar todos eles. 

Também música clássica. Não é que aprendeu a pronunciar o nome Beethoven e gostou da 5ª Sinfonia e Sonata ao Luar, quando a mulher recomendou ouvi-las?

Ela lê novelas, romances. Depois o intima a ler também.

Tem um, "Olhai os Lírios dos Campos", que gostou muito, com a história daquela moça de coração bom, casada com um rapaz sem rumo na vida. Mais na frente chegou a "O Tempo e o Vento" e até hoje sente Ana Terra e Bibiana como se fossem de carne e osso.

Tereza Batista, Tieta, Tocaia Grande... Jorge Amado foi uma grande escola, ao mergulhar no universo do baiano sentiu-se menos tosco.

Não terminou o segundo grau, porém com a vivência na cidade grande, a convivência de Ludmila e a leitura de livros, é como se tivesse cursado universidade.

Até melhorou o jeito de falar, não diz mais tantas palavras erradas, como antes.

Ficar velho tem outro lado ruim: os anos vão passando e as pessoas, umas até mais novas, desaparecem.

Não faz muito perdeu Arão, amigo de quando era menino. Mesmo distantes mantiveram o carinho, um pelo outro. Quando ia à cidade de sua infância, duas ou três vezes por ano, fazia questão de visitar o colega.

Da última vez ficou espantado como estava gordo, mal podia carregar nas pernas o próprio peso.

Não demorou muito recebeu a notícia de que ele partira.

Sentiu-se triste, lembrou das brincadeiras de mais de meio século atrás. 

"Parece que faz tanto tempo".

E há poucos dias perdeu uma amiga, Carla, quase da mesma idade, ainda mais nova um pouco.

Aristide já tinha tido alguns sustos, porém sobrevivera. Será que tinham sido as rezas e os cuidados da mulher? A própria fé, insegura, o ajudara?

Quem é que sabe das vontades de Deus, que nunca se vê, não fala com a gente?

Sabemos, apenas que tá lá, em algum lugar, ou em todo canto, espionando cada um e decidindo por todos, como se fôssemos brinquedos. 

É assim: primeiro vão os avós, depois tios, os pais, a geração deles, conhecidos.

Quando se chega aos 70 muitos dos amigos partiram sem dar o aviso prévio.

Quem tá aqui, continua sua jornada, precisa de feijão e farinha na hora do almoço, café à noite, porque se não tiver isso a refeição num tem graça.

Carne já gostou mais, hoje nem faz questão. E não é por causa do preço, é que prefere os cereais, os legumes e as verduras mesmo.

Ludmila fala em comida saudável, mas ela mesmo come e bebe porcaria.

Quem já viu evitar açúcar, gordura, carne e tomar Coca Cola dia sim, outro não?

Quarenta e cinco anos não são 45 dias. E apesar de passado tanto tempo lembra bem daquele primeiro abraço, quando se acendeu uma fogueira dentro dele (e dela também), que nunca mais apagou.

Ludmila é bonita, lembra a Gabriela do folhetim. Olhos verdes, pela sedosa, cor de canela, pernas e coxas torneadas.

Parecia mesmo mulher de televisão, quando a conheceu. Se hoje tá mudada, sem a beleza de outrora, isso não importa. 

Foi tanto amor, nesses anos todos, que os estragos feitos pelo tempo são insignificantes, incapazes de mudar um sentimento plantado e regado durante quase 50 anos.

Quando ela sai, vai visitar um filho em outra cidade e demora três dias ou uma semana, a saudade é tanta que dói.

E sonha com sua volta, deseja tê-la nos braços, quer senti-la toda, ficar dentro dela como se fossem um só.

Sem se importar com nada, nem com a falta do dinheiro pra pagar as contas.

Sim, tem uma cantora chamada Ludmila. Sua mulher, no entanto, nasceu bem antes, por isso não sabe porque os pais colocaram esse nome na filha.

Mais estudada, ela também é mais falante, despachada, não tem medo de nada.

Aristide é caladão, mesmo com tanto tempo na cidade grande se mantém circunspecto, como quando morava no interior.

A vida vai passando, vai rápido, como se fosse um carro descontrolado.

Os filhos crescem tão depressa, ficam mais sabidos que nós.

Cada um toma seu rumo. É uma sorte quando ficam por perto, e se pode ver pelo menos uma vez por semana.

Aí os encantos passam para os netos, as netas. São tão lindos e lindas. Quando pronunciam vovô parece que acendem a luz do mundo.

Aristide gosta das manhãs e do entardecer. A noite foi feita pra dormir. E ele acorda sempre entre cinco e seis horas. Em plena cidade grande, ouve o canto de um galo, um cachorro late distante. Ele vai até o banheiro, lava o rosto, se olha no espelho e vê um senhor com a testa marcada, os poucos cabelos brancos.

Olhos de preocupação.

Come um pedaço de bolo com queijo, toma um copo de água. Costume de muito tempo. O copo de água logo que acorda. Alguém lhe disse que faz bem pra saúde. Na sua cabeça, o líquido sai limpando tudo, ajuda a expulsar a sujeira, faz mijar e alivia a pressão.

Volta pra o quarto e Ludmila está dormindo. Bom que está em casa. Olha para ela, enamorado,  começa a alisar os cabelos, beija seu rosto. Então ela acorda e lhe presenteia com um sorriso de 65 anos.

Sim, perdeu uns dentes também. Quando puder se cuida disso. Trocaram um abraço, os lábios se tocam.

E a paixão de 50 anos se renova, fazem amor como se fossem jovens, valorizam aquele momento em que se pertencem, quando não existe nada entre eles.

Endurecer sem perder a ternura. Envelhecer sem deixar o fogo apagar. Talvez seja só isso mesmo.

Amar Ludmila é uma forma de se amar também, imagina Aristide, convencido de que a felicidade é possível em qualquer idade.

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