Ali Kamel faz as honras para Bolsonaro
Numa estranha e reveladora
“carta interna”, o chefão do jornalismo da Globo, Ali Kamel, a pretexto de
“parabenizar” a equipe da reportagem ligando Bolsonaro ao assassinato de
Marielle, confessa aberta e candidamente ter sido enganado no episódio. E deixa
claro ainda ser comum veículos de comunicação serem usados em casos tais (mas
não diz por quem, nem para quê).
Normalmente, comunicações
internas dessa natureza são curtas (a equipe está careca de saber os detalhes)
e motivacionais: “Bravo moçada! Demos mais uma dentro!” Etc. e tal. Ao
contrário, o curioso documento assinado pelo sr. Kamel é excessivamente
explicativo e longo (3 páginas, 102 linhas, 7.057 caracteres). É claramente
endereçado ao público externo. Porque ele não publicou uma nota oficial, só ele
sabe; desconfio que houve algum ruído com os donos das Organizações Globo, daí
o carimbo “carta interna”, vazada por um “descuido” e publicada hoje por toda a
imprensa.
Destaco trechos reveladores:
Hoje sabemos que o advogado do
presidente, no momento em que nos concedeu entrevista, sabia da existência do
áudio que mostrava que o telefonema fora dado, não à casa do presidente, mas à
casa 65, de Ronnie Lessa.
Por que os principais
interessados em esclarecer os fatos, sabendo com detalhes da existência do áudio,
sonegaram essa informação?
É certo que em 37 anos de
profissão, nunca imaginei que o jornalismo que pratico fosse usado de forma tão
esquisita, mas sou daqueles que se empolgam diante de aprendizados.
O longo texto traz uma
revelação verdadeiramente surpreendente: a de que, enquanto a sucursal do Rio
“apurava” o caso, uma fonte “absolutamente próxima da família do presidente”
informara à sucursal de Brasília que “ia estourar uma bomba”: “a investigação
do Caso Marielle esbarrara num personagem com foro privilegiado e que, por esse
motivo, o caso tinha sido levado ao STF.” O ingênuo jornalista se pergunta,
numa confissão de incompetência impressionante: “Eu estranhei: por que uma
fonte tão próxima ao presidente nos contava algo que era prejudicial ao presidente?
Dias depois, a mesma fonte perguntava: a matéria não vai sair?”
Mesmo assim, o sr. Kamel
decidiu publicar a matéria, apesar de saber que no dia dos fatos narrados
Bolsonaro estava em Brasília e, em tese, não poderia ter atendido o telefonema
do miliciano Élcio Queiroz.
Por esse inacreditável
documento pudemos saber ou deduzir os bastidores do episódio que, como comentei
em post anterior, não se trata de um problema de liberdade de expressão, mas de
disputa feroz entre os podres poderes.
Pelo entendido e subentendido,
a equação deve ter sido a seguinte:
1 — A fonte da reportagem. A
Globo não diz, mas Bolsonaro explicitou: Wilson Witzel, visando minar a imagem
dele e se candidatar a presidente em 2022 (se não é vero, faz todo o sentido).
Não havendo desmentido cabal, nem confirmação oficial (sigilo da fonte), assumo
essa hipótese como a mais provável.
2 — O motivo da reportagem.
Mesmo verificando que, no dia relatado pelo depoimento do porteiro à Polícia do
Rio de Janeiro, Bolsonaro estava em Brasília, nosso irrequieto Kamel acreditou
que valeria a pena publicar a notícia, possivelmente avaliando que assim
ajudaria seus patrões na disputa com o clã Bolsonaro.
3 — O “uso” da reportagem.
Sabendo de tudo (a tal “fonte próxima da família Bolsonaro” sabia, né), a turma
do Capitão resolveu bancar uma jogada de risco: ajudar a difundir a informação
(que iria sair de todo jeito) e com isso reforçar a ida do processo ao nível
nacional, onde ele tem foro privilegiado.
Com isso, o caso seria tirado das
mãos de Witzel e passado para as de Sérgio Moro — que, não à toa, antes de
qualquer vista d’olhos na papelada já ameaçou enquadrar o coitado do porteiro
na Lei de Segurança Nacional.
4 — Consequências. Mas não há
o risco de o STF engrossar o caldo?, perguntará o leitor. A isso, Eduardo
Bolsonaro já respondeu, quando blasonou que bastariam um jipe, um soldado e um
cabo para fechar o Supremo. Por essa concepção, se explica a decisão de
arrancar o processo de um inimigo perigoso e leva-lo “para casa”, como o “seu
Jair” já fez com uma prova crucial (e confessou na maior cara de pau): o áudio
das conversas da portaria do condomínio, confiscado — vejam só! — “para não ser
adulterado”. Sem falar no poder de protelação de Moro e do PGR e nas
tecnicalidades: a tentativa de obstrução da Justiça ocorreu antes do mandato
presidencial etc.
45— O jornalismo da TV Globo
tomou, num primeiro momento, um cruzado atordoante nessa briga de cachorro
grande. E visando servir a um (Witzel) serviu ao outro (Bolsonaro). A pífia
nota do sr. Kamel apenas acusa o golpe.
Vejamos como se desenrolarão os
próximos capítulos dessa novela real eletrizante da Rede Globo.
Quem tiver uma informação
quente que altere os fatos em que se baseia esta interpretação, fale
agora ou cale-se para sempre.
*Homero
Fonseca é jornalista, escritor e consultor literário. Foi editor da revista
Continente. Autor do romance "Roliúde", entre outros livros.
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