Por Homero Fonseca*
Desta vez, as revistas
semanais de “informação” acertaram. Meio sem querer, por um ato falho. As capas
das revistas Veja (“O primeiro encontro cara a cara”) e Istoé (“Ajuste de
contas”), da semana que antecedeu o depoimento de Lula perante Moro no palco da
Lava-jato, anunciavam o “confronto” entre o juiz e o réu. Era um erro grosseiro
do ponto de vista processual — uma vez que juiz não se opõe a réu — e um apelo
sensacionalista, mas foi certeiro do ponto de vista político.
Assim como os célebres
“processos de Moscou” da era stalinista, ou a audiência de Fidel Castro nos
tribunais da ditadura de Fulgêncio Batista (e seu famoso discurso “A História
me absolverá”), esse julgamento da Lava-jato, da forma como vem sendo conduzido
por Moro, é um evento eminentemente político. E o encontro de 10 de maio foi um
formidável embate em que, como é comum nessas ocasiões, um dos atores assumia
explicitamente o caráter político do fato e outro o negava, por conveniência
própria (afinal, do ponto de vista da formalidade jurídica, um juiz não poderia
admitir isso).
Para compreender as
motivações, as ideias e o comportamento do juiz de Curitiba é fundamental
remeter ao seu famoso artigo sobre a Operação Mais Limpas, na Itália, em que
ele escancara seu ideário jurídico-ideológico. Está tudo lá, meus camaradinhas,
não vê quem não quer. No artigo, Moro defende “o largo uso da imprensa”,
inclusive os vazamentos (“A investigação vazava como uma peneira”), anotando
que “o constante
fluxo de revelações manteve o interesse do público elevado e os líderes
partidários na defensiva”.
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No texto, Moro defende
o estado de exceção, relativizando o conceito fundamental da presunção de
inocência e enaltecendo o novo tipo de juiz surgido na Itália, os chamados pretori d’assalto (juízes de ataque, i.e., juízes
que tomam uma postura ativa, confundindo-se com o promotor). Por fim, salienta
ter a magistratura ganho ‘uma espécie de legitimidade direta da opinião
pública”. Aí
estão a perfeita concepção messiânica de Justiça e a justificativa do estado de
exceção para atingir fins nobres, numa versão sofisticada e racionalizada da
velha máxima “os fins justificam os meios”. Este é um resumo muito drástico,
mas suficiente para revelar as ideias básicas do líder da República de Curitiba[1].
Quando caiu no seu
colo a investigação da Operação Lava-jato, Moro julgou-se o homem certo, no
lugar certo, na hora certa. E atribuiu-se a missão de acabar com a corrupção no
Brasil. O único problema, como demonstra o encaminhamento dado ao processo, é
que ele, de uma forma meio autista, colocou todo o foco no PT e em Lula:
qualquer indício nessa direção é suficiente para formar a convicção de culpa,
independentemente de provas, valendo o contrário para os restantes partidos e
atores políticos, todos tão ou mais envolvidos historicamente com práticas
ilícitas nas campanhas eleitorais e no exercício dos mandatos quanto a gente
das camisas vermelhas (não resisto a uma imagem um pouco cômica: Moro é como um
miúra, aqueles touros das arenas da Espanha que, dizem, somente enxergam o pano
vermelho).
Alguém tem dúvida de que se Moro, mais
que indícios e convicções, tivesse uma única prova concreta teria esmagado Lula
no confronto da quarta-feira? Sua postura não foi a de um magistrado, mas de um
visitador inquisitorial (inclusive praticando a tortura
psicológica de quatro horas e meia de interrogatório repetindo as mesmas
perguntas, o que fez a defesa, por seu turno, repetir os mesmos argumentos,
numa guerra de trincheiras em que ninguém conseguia avançar um palmo). Na maior
parte do tempo, a inquisição, digo inquirição, foi um espetáculo cansativo para
quem assistiu depois aos vídeos. Em sua sanha acusatória, o juiz-promotor pagou
o mico de apresentar um documento sem assinatura para incriminar sua
vítima — somente acreditei nos meus olhos depois de assistir várias repetições,
por canais diferentes!
Na histórica audiência
de 10 de maio, Moro negou na maior cara de pau os postulados defendidos por ele
próprio no artigo sobre a Operação Mãos Limpas e postos em prática nesses três
anos de Lava-jato: em posição defensiva, disse que ia se ater apenas às provas
(que provas?), que a imprensa não tinha nada a ver com o caso (humm), que nunca
houve vazamento (?!) e acrescentou algo desnecessário: que não tinha “desavença
pessoal” com o réu. E, enfaticamente, negou de mãos juntas ser esse um processo
político. Ora, ora. Um juiz que ocupa as redes sociais na internet para
“agradecer o apoio da maioria da população, senão sua totalidade” — o que está
fazendo senão política pura e simples?[2] Ou isso está previsto em alguma lei, algum
parágrafo, algum inciso, alguma alínea de algum código de processo penal,
civil, constitucional ou o escambau (para rimar)?
Sérgio Moro é um
jogador inteligente, frio e extremamente ousado. Com o apoio de vasta parcela
da opinião pública intoxicada pelo noticiário, o patrocínio da grande mídia e o
poder de justiça nas mãos, tem avançado celeremente em seus objetivos,
atropelando regras e ritos. Ninguém se atrevia a contestá-lo. Ao enfrentar
Lula, Moro se deparou, pela primeira vez, com seus limites. E teve de rever seu
delírio populista de contar com o apoio da “totalidade da população”. Além de
se manter na defensiva, justificando o tempo todo sua “neutralidade” (que juiz
é esse?), temeu que a situação saísse de controle e, mais vez, foi às redes
sociais e à imprensa pedir aos seus “partidários” evitassem confronto com os
simpatizantes do petista, recuando do apelo ao apoio solicitado algumas semanas
antes.
Lula não falou para os autos, falou
para o público (que assistiria depois os vídeos) e para a História. “J’Acuse” — parecia
dizer ele, denunciando o caráter político do processo, a fragilidade das
acusações, a participação fundamental da grande imprensa na construção de sua
culpabilidade, os métodos insólitos da Polícia Federal, do Ministério Público e
do próprio juiz-acusador. Pediu Justiça e respeito.
Como em todo grande
debate político, houve momentos em que um lado saiu-se melhor do que o outro:
as torcidas comemoram detalhes de uma vitória percebida emocionalmente. A
grande imprensa, repetindo seu papel de agente político comprometido com a
destruição de uma liderança popular, vem dando tratos à bola na tentativa
atabalhoada de desconstruir o discurso de Lula, apegando-se a contradições
irrelevantes e falhas verbais comuns num debate. Faz o seu jogo de
desinformação que tem levado leitores e telespectadores a formar um juízo sobre
os fatos, com base em mentiras ou meias-verdades. Por exemplo, no caso do
triplex de Guarujá (objeto específico da denúncia e da audiência), tem
escondido o fato de que foi dona Marisa Letícia sim quem se pôs à frente das
negociações, adquirindo, em 2005, cotas-partes da Bancoop — Cooperativa
Habitacional dos Bancários de São Paulo, dona e responsável pela construção do
prédio. Quando a cooperativa dos bancários não conseguiu tocar o projeto e
passou-o à construtora OAS, dona Marisa prosseguiu as negociações e por fim
desistiu, após a visita do marido ao local. Isto está nos autos, documentado
pela defesa. Que a OAS tenha se disposto a fazer um mimo ao ex-presidente,
providenciando reformas e tudo o mais, está na raia das possibilidades. Mas a transação
jamais foi feita. Lula nunca foi proprietário nem usufruiu com a família do
imóvel, não assinou documentos, não fez escritura e a OAS relacionou o prédio e
o apartamento na esfera judicial, mais de uma vez, como propriedade sua. Mas
isso não é dito, nem mostrado. Mas a acusação é justamente de ocultação de
patrimônio, dirão os ventríloquos da imprensa. Apresentem então as
contraprovas, ora. E como dona Marisa (ou Lula) iria adivinhar que o
apartamento pretendido e desistido fosse passar das mãos da cooperativa dos
bancários para a empreiteira e daí servir de propina ao ex-presidente? Mas,
nessa hora de profunda fratura política e ideológica, poucos estão interessados
em fatos e4 argumentos. Querem reforçar suas convicções e fazê-las prevalecer,
na lei ou na marra.
Aos muito apegados à
letra da lei, a insistir por aí no caráter estritamente jurídico do encontro:
aquilo não foi audiência, foi um debate, sim. Sobretudo nos 20 minutos finais,
quando foi dada a palavra ao réu para suas considerações finais, interrompidas
a todo instante pelo adversário, digo, juiz, rebatendo as alegações mais
contundentes. Era o momento da autodefesa — totalmente cerceado pelo
“imparcial” Moro, cuja máscara caiu na frente de milhões de espectadores.
Anotem: Lula será condenado
(Moro não pode mais recuar diante da pressão da mídia e dos seus partidários).
O jogo é político. O “timing” da condenação dependerá da intricada tramitação
judicial brasileira. O objetivo é tirá-lo da disputa presidencial de 2018 e dar
uma satisfação à pequena burguesia açulada em sua sede de sangue vermelho. E o
povão assistindo a tudo, ruminando, tirando suas conclusões. De sua reação e da
capacidade das reais lideranças populares se posicionarem nesse momento
decisivo dependerá o futuro da nossa combalida democracia. Quem viver verá.
[1] Aos realmente interessados em conhecer os
fundamentos das posições de Moro, recomendo fortemente a leitura na íntegra do
artigo: “Considerações sobre a operação mani
pulite”, in Revista CEJ (Centro de Estudos Judiciários) do Conselho
da Justiça Federal, n. 26, jul/set 2004.
[2] Publicado em 19 de março de 2017 na página
‘Eu Moro com Ele’, mantida em uma rede social pela esposa do juiz ,
Rosângela Wolff Moro: https://www.facebook.com/rosangelawolffmoro/
*Homero Fonseca é jornalista e trabalhou nos principais
veículos de comunicação de Pernambuco. É autor do romance “Roliúde”, de “Pernambucânia”
e outros livros. Foi Secretário de Imprensa na Prefeitura do Recife.
Uma análise perfeita do encontro do Lula com o juiz federal.Eu assisti o vídeo algumas vezes para poder compreender aquele momento histórico quando a maioria dos brasileiros tinham um receio de que o Lula poderia ser preso pela segunda vez pelo juiz que cometeu um crime grave quando divulgou uma conversa entre a Dilma e Lula ilegalmente.
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