Há escritores que têm uma vida tão
instigante quanto a sua obra. É o caso de Julio Florêncio Cortázar. Filho de argentinos,
ele nasceu em Bruxelas, numa passagem dos seus pais pela Bélgica, quando
tentaram se estabelecer naquele país.
As coisas não deram certo para a
família na Europa, principalmente devido à primeira guerra mundial, que
prejudicou os negócios em que tinham se aventurado Julio José Cortázar e Maria
Hermínia (pais do escritor).
Ainda tentaram a vida na Suíça, mas
terminaram retornando à Argentina. Cortázar viveu dos 4 aos 38 anos no país sul-americano,
onde estudou, teve toda sua formação literária e escreveu seus primeiros
livros.
Júlio Cortázar casou com a tradutora
argentina Aurora Bernárdez com quem viveu de 1953 a 1968.
Depois, durante 10 anos manteve um
relacionamento com a responsável pela
área de literatura da Editora Gallimar,
Ugné Karvelis, que se tornou sua agente literária.
No final de 77, numa viagem ao
Canadá, conheceu a escritora americana Carol Dunlop, 32 anos mais jovem do que
ele. Apaixona-se pela jovem e termina por se separar de Ugné para viver o
grande amor de sua vida.
Cortázar casa com Carol em 1981, mas
a história dos dois não tem o final feliz de alguns romances: a escritora morre
prematuramente em 1982. O argentino fica arrasado, entra em depressão e perde o
gosto pela vida.
Pouco tempo depois da morte da
esposa, o escritor escreveu: “Estou farto do meu corpo. A morte me golpeou no que mais
amava e não tenho sido capaz de levantar-me e devolver-lhe o golpe com a
simples atitude de voltar a viver. Há momentos em que a única realidade para
mim é a tumba de Carol, para onde vou observar a passagem das nuvens e o tempo,
sem ânimo para mais nada”, escreveu ele a um amigo.
Sobreviveu apenas dois anos à perda da
esposa. Em 1984 o autor de O Jogo da
Amarelinha vai se juntar à sua amada, sendo sepultado junto ao túmulo de
Carol Dunlop, num cemitério de Paris.
CONTO - Um dos contos mais famosos do escritor, “A Casa Tomada”, foi publicado
em 1946 na revista Los Anales de Buenos Aires, que tinha como diretor Jorge
Luís Borges, o grande nome da literatura argentina.
Julio Cortazar se formou em letras, trabalhou como professor em algumas
províncias, começou a fazer traduções de livros, uma delas do conhecido romance
infanto-juvenil Robson Crusoé, de Daniel Defoe, além de
escrever seus contos e romances.
É considerado um escritor inovador,
ligado à literatura fantástica e participante do “boom latino-americano” que
inclui nomes como o peruano Mário Vargas Llosa, o mexicano Carlos Fuentes, o
chileno José Donoso e o colombiano Gabriel Garcia Márquez.
Os brasileiros Érico Veríssimo e
Jorge Amado, que foram contemporâneos de alguns dos nomes citados também
abriram espaço para o “realismo fantástico”, em obras como “O Tempo e o Vento”
e mesmo “Tieta do Agreste”.
Cortázar foi um mestre do conto
curto, utilizando na maioria das vezes uma linguagem direta, precisa, sem muito
floreio com as palavras.
Nas suas histórias curtas retratou
sua paixão pelo boxe, pelo jazz (O
Perseguidor relata com maestria a vida do saxofonista Charlie Parker) e a
sua infância vivida numa casa com forte presença feminina (conto Escola à Noite).
O argentino teve seu nome reconhecido
internacionalmente e ainda hoje sua literatura provoca forte impacto em quem
toma conhecimento com sua obra.
Foi um escritor engajado que
acompanhou com paixão as revoluções em Cuba e na Nicarágua, tendo lutado contra
as ditaduras que se estabeleceram na América Latina em países como Argentina,
Chile, Brasil e Uruguai.
Se fosse vivo Julio Cortázar teria
feito 100 anos em agosto de 2014. O centenário do escritor foi lembrado em
diversos países, inclusive aqui no Brasil. O Jornal O Globo, do Rio de Janeiro,
publicou uma reportagem de página inteira destacando a importância do escritor.
Abaixo transcrevemos um trecho do
conto “A Casa Tomada”, um marco na literatura de Cortázar.
Lembrarei sempre com toda a clareza porque foi
muito simples e sem circunstâncias inúteis. Irene estava tricotando no seu
quarto, por volta das oito da noite, e de repente tive a ideia de colocar no
fogo a chaleira para o chimarrão. Andei pelo corredor até ficar de frente à
porta de mogno entreaberta, e fazia a curva que levava para a cozinha quando
ouvi alguma coisa na sala de jantar ou na biblioteca. O som chegava impreciso e
surdo, como uma cadeira caindo no tapete ou um abafado sussurro de conversa. Também
o ouvi, ao mesmo tempo ou um segundo depois, no fundo do corredor que levava
daqueles quartos até a porta. Joguei-me contra a parede antes que fosse tarde
demais, fechei-a de um golpe, apoiando meu corpo; felizmente a chave estava
colocada do nosso lado e também passei o grande fecho para mais segurança.
Entrei na cozinha,
esquentei a chaleira e, quando voltei com a bandeja do chimarrão, falei para
Irene:
— Tive que fechar a porta do corredor. Tomaram a parte dos fundos.
— Tive que fechar a porta do corredor. Tomaram a parte dos fundos.
Ela deixou cair o tricô e olhou para mim com seus graves e cansados olhos.
— Tem certeza?
— Tem certeza?
Assenti.
— Então — falou pegando as agulhas — teremos que viver deste lado.
— Então — falou pegando as agulhas — teremos que viver deste lado.
Para alguns intérpretes da obra do escritor, a história é uma
metáfora relacionada com a ditadura peronista na Argentina.
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